Alisson Henrique

Publicado em Dux Neutrorum.

Um dualismo de substância

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

No artigo "The Immaterial Aspects of the Thought", James Ross argumenta que alguns aspectos do pensamento são imateriais. Ele baseia seu argumento na ideia de que alguns pensamentos são determinados entre funções incompatíveis, de uma forma que nenhum processo físico, série de processos ou função fisicamente determinada entre processos pode ser. O resultado é que tal pensamento nunca é idêntico a nenhum processo ou função física.

Para ilustrar seu argumento, Ross usa o exemplo da adição. Ele argumenta que, quando adicionamos dois números, não estamos simplesmente seguindo uma série de regras físicas ou computacionais. Em vez disso, estamos aplicando um conceito abstrato de adição, que é independente de qualquer processo físico específico.

Ross também argumenta que nossos pensamentos são muitas vezes intencionais, ou seja, eles são dirigidos para um objeto específico. Ele sustenta que essa intencionalidade não pode ser explicada por processos físicos, pois os processos físicos não são intencionais por natureza.

Além do exemplo da adição, Ross também utiliza outros exemplos no artigo para ilustrar seu argumento. Um desses exemplos é o da compreensão de uma metáfora. Ele argumenta que, quando compreendemos uma metáfora, não estamos simplesmente seguindo uma série de regras físicas ou computacionais. Em vez disso, estamos fazendo uma conexão entre dois conceitos que são, em princípio, incompatíveis.

Outro exemplo utilizado por Ross é o da criatividade. Ele argumenta que, quando somos criativos, não estamos simplesmente seguindo um modelo físico ou computacional. Em vez disso, estamos produzindo algo novo e original.

Ross também argumenta que nossos pensamentos são muitas vezes subjetivos, ou seja, eles são experimentados de uma forma única por cada indivíduo. Ele sustenta que essa subjetividade não pode ser explicada por processos físicos, pois os processos físicos são objetivos por natureza.

Por fim, Ross argumenta que nossos pensamentos são conscientes, ou seja, somos conscientes de que estamos pensando. Ele sustenta que essa consciência não pode ser explicada por processos físicos, pois os processos físicos não são conscientes por natureza.

Sentido

segunda-feira, 5 de junho de 2023

De acordo com um dos magníficos pensamentos de Pascal, os problemas humanos surgem da incapacidade do homem permanecer em repouso, sentado por algum tempo. Isto parece a prima facie um pensamento um tanto estranho de imaginar e até mesmo superficial. Mas Pascal prossegue argumentando que não é o mero repouso inanimado que resolve o caos humano. Muito pelo contrário. Ele indica que o próprio repouso é insuportável pelo tédio que gera. O tédio no repouso é insuportável pelo desespero que gera quando uma reflexão inata é evidenciada em tal repouso: nossa condição leviana, ignorante, miserável, e mortal. "Ele sente então todo o seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. Imediatamente nascerão do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a tristeza, a mágoa, o despeito, o desespero." O desespero insuportável leva à diversão, que "nos entretém e nos faz viver insensíveis" em relação à essas condições humanas. Sem a diversão, o homem buscaria meios mais sólidos de escapar da morte e sair da ignorância. Mas a ausência de diversão gera tristeza, e para resolver esse caos do desespero humano, a escolha geralmente é parar de pensar nisso. (Parece, ao menos para mim, que a maior inspiração em Dostoiévski – principalmente nos personagens príncipe Mishkin e Aliócha – é seu contato com o realismo de Pascal, mas não trataremos disto agora.)

A resposta de Pascal segue sua jornada até Cristo que, na minha humilde opinião, é com muito peso a única opção razoável para tomar como "aposta". "Apostar" em Deus e, mais especificamente, no Deus cristão – aqui Pascal segue uma linha de teologia natural que justifica o porquê do Deus cristão e não outro Deus que não cabe tratarmos disto agora, mas talvez em uma futura postagem –, é a única saída que satisfaz a necessidade de objetividade de um sentido para todo esse caos e desespero. Objetividade esta que parece ausente nos argumentos de Viktor Frankl, o famoso psiquiatra da Logoterapia, e Jordan Peterson, o famoso psicólogo contemporâneo.

Não parece muito vantajoso ou diferente de uma ilusão (tal como a "ilusão de indulto" de Viktor Frankl) o mero sentido subjetivo. Imagine, por exemplo, que alguém sente uma obrigação moral em ser responsável por salvar vidas em um hospital. (Por um momento acreditei que não seria preciso esclarecer que não estou desmerecendo tal juízo moral, mas acidentes acontecem... e é melhor que fique evidente que não tenho esse nível de desprezo por pessoas responsáveis!) O que um médico realmente faz? Pode, acaso, salvar alguém da morte? Ou não seria mais razoável reconhecer que o trabalho da medicina é – de uma forma um tanto reducionista, eu reconheço – "adiar o inevitável"? Aqui alguns idólatras da ciência aparecem de seus buracos para argumentar em favor de uma espécie de busca científica pela imortalidade do homem. Não pretendo refutar nem rejeitar esse tipo de esforço, mas simplesmente expor, caso necessário, o fatídico evento futuro (e ainda embasado em cosmologia contemporânea fresquinha) de um universo caótico e impossibilitador de vida. Mas peço que para que o raciocínio prossiga, continuemos a pensar sobre nossa morte como inevitável, seja agora, seja daqui a alguns milhares ou milhões de anos. O que o propósito e/ou responsabilidade do doutor vai resolver? Por que alguém gostaria de multiplicar em sua memória, a multiplicação de males gratuitos deste mundo? Não é, por acaso, mais razoável reconhecer o terrível (se verdadeiro) engano do sentido subjetivo? 

Não tenho dúvidas de que a responsabilidade social é algo belo e que devemos ter coragem de assumir estas carências. Mas diminuir o sofrimento não é igual a felicidade, senão uma que é passageira, ilusória. A verdadeira percepção da realidade em seu nível mais cru, foi primeiramente contemplada pelo escritor de Eclesiastes (muito provavelmente Salomão.) Ele percebeu de uma forma um tanto tardia, que nada do que se passa "debaixo do Sol" é novo, e que quase nenhuma vantagem se extrai dos esforços que os homens se afadigam. A verdadeira felicidade é participar da divindade. Pois isto é muito mais do que aqui e agora. E mais uma vez Pascal: "a única boa esperança desta vida é a esperança em uma próxima vida." Ou como William Lane Craig escreve: "Se Deus não existe, você não passa de um aborto da natureza jogado em um universo sem sentido para viver uma vida sem propósito."

Os três estágios da vida por Søren Kierkegaard

sábado, 3 de junho de 2023

– O estágio estético: uma vida no nível sensual em busca de prazer e em torno de si mesmo. O paradoxo do nível estético é que no final ele leva a infelicidade, ainda que os prazeres da alma sejam constantemente satisfeitos. Tal nível não pressupõe uma ignorância intelectual ou cultural, mas que tudo se dá por puro egocentrismo. A pessoa egocêntrica cai em desespero por ausência de significado em seu hedonismo.

– O estágio ético: tendo como ponto de partida o estágio anterior e sua insignificância existencial, o desespero agora se torna o salto entre o nível estético e ético. Aqui surgem motivações para a aderência de valores morais e a tentativa de viver neles de forma objetiva. O homem agora é moral, de um ponto de vista teórico; mas a impossibilidade prática de se viver verdadeiramente neste estágio sem qualquer deslize também leva a culpa e mais tarde, causa desespero e infelicidade.

– O estágio religioso: é neste estágio da existência humana que se encontra perdão de pecados e relacionamento com Deus. O salto do estágio ético para o estágio religioso é agora motivado pela crença em um Deus que perdoa iniquidades pois somente um Deus Criador pode nos dizer objetivamente o que é moral e nos perdoar quando somos incapazes de agirmos moralmente. É neste estágio que está a realização verdadeira humana.

Confiabilidade das funções próprias

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

O que se segue, é um argumento teísta probabilístico sobre a confiabilidade de nossas funções próprias, retirado de um artigo no livro "Two Dozens (or so) Arguments fo God".

Teísmo aqui é representado por T; evolução não teísta por NTE (non-theistic evolution). A confluência da função própria e confiabilidade é representado por R (reliability). LoL é a Lei da Probabilidade (Law of Likelihood).

Onde,

LoL: Se Pr (E|H1) >> Pr (E|H2), então E favorece H1 sobre H2. Isto é, se a probabilidade da evidência sobre a hipótese 1 for maior muito maior que a probabilidade da evidência sobre a hipótese 2, então a evidência favorece a hipótese 1 sobre a hipótese 2.

1. Pr (R|T) >> verdadeiramente pequena. (Premissa)

2. Pr (R|NTE) = verdadeiramente pequena. (Premissa)

3. Portanto, Pr (R|T) >> Pr (R|NTE). (A partir de 1 & 2)

4. Se Pr (R|T) >> Pr (R|NTE), então R favorece T sobre NTE. (LoL)

5. Portanto, R favorece T sobre NTE. (De 1 até 4)

O argumento pressupõe que nossas faculdades cognitivas são confiáveis, o que é justo pensar, uma vez que não poderíamos falar sobre qualquer coisa se não tomássemos tal procedimento auto reflexivo como verdadeiro. Se nossas faculdades cognitivas são verdadeiras, então a probabilidade de T é muito mais alta do que a probabilidade de NTE, uma vez que em T a probabilidade de R ter sido intencionalmente direcionado à verdade é muito maior do que NTE.

O argumento da contingência

sábado, 1 de agosto de 2020

O argumento da contingência foi proposto pelo grande matemático, físico e filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz, que lançou uma das perguntas mais complexas que eu conheço (Por que existe algo ao invés de nada?), e cuja resposta ele encontrou, por um exercício de raciocínio, que somente Deus (um ser necessário) poderoso poderia criar o Universo (algo contingente). Eis o argumento que li no livro "Two Dozens (or so) Arguments for God", no capítulo "Why is there anything at all?", em sua versão na lógica modal:

Tomemos como axiomas um pouco de lógica modal:

M: □p → p  [se é necessário que p, logo p]

K: □(p → q) → (□p → □q)  [se é necessário que, se p, então q, logo, se é necessário que p, então é necessário que q]

4: □p → □□p  [se é necessário que p, então p é necessariamente necessário]

5: ◊p → □◊p  [se é possível que p, então é necessariamente possível que p]

Vamos usar ‘N’ para abreviar ‘∃x (N(x))’, onde ‘N(x)’ se lê ‘□(∃!(x) & ◊ (∃y (x é a causa de y)))’. Ou seja, N é um ser necessário (Deus) e causa y no mundo atual, e y é contingente (Universo e tudo o mais).

1. Assumamos que ◊N.

2. Então: ◊□N. (□(N → □N), pelos axiomas 4 & 5)

3. Agora suponha (a bem do argumento) que ◊~N.

4. Então: □◊~N. (pelo axioma 5)

5. Então: ~◊~◊~N. (substituindo ‘~◊~’ por ‘□’)

6. Então: ~◊~~□~~N. (substituindo ‘~□~’ por ‘◊’)

7. Então: ◊□N. (porque ‘~~X’ é equivalente a ‘X’)

8. Mas (7) contradiz (2).

9. Logo: (3) não é verdadeiro. ((3) → (8))

10. Logo: ~◊~N.

11. Logo: □N. (substituindo ‘□’ por ‘~◊~’)

12. Logo: N. (□X → X, pelo axioma M)

13: Logo: se ◊N, então N.

A treliça e a videira

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Não é muito comum livros de teologia me agradarem. Principalmente por seus procedimentos metodológicos para as interpretações que fazem acerca da Bíblia e a confusão linguística em que habitualmente caem. Para falar a verdade, eu até evito seguir a moda de estabelecer uma meta e ler dezenas de livros por ano pelo simples pensamento de que a maioria dos tais livros poderiam ser muito mais resumidos, ou ficam repetindo coisas que já foram ditas por autoridades teológicas do passado. Penso ser desnecessário ler um livro de centenas de páginas que afirma coisas que já foram anteriormente afirmadas, mas com palavras diferentes; creio, inclusive, que tal modo de escrever acaba poluindo a virtude de apreciar uma boa leitura teológica. Mas não tenho tanto problema com a Teologia em si, mas com teólogos contemporâneos que escrevem em dezenas de livros aquilo que poderiam ter colocado em apenas um.

Mas não se segue, é claro, que creio ser irrelevante todo material teológico produzido em nossos dias. Por acaso, me deparei com um livro que me chamou bastante atenção, seu nome é "a treliça e a videira". A treliça é algo mais ou menos como a estrutura da Igreja, e a própria Igreja (a membresia) é a Videira.

De acordo com os autores – e com as Escrituras, é claro - não há diferença entre ser “um discípulo não envolvido com o discipulado” e “não ser discípulo”, uma vez que “ser discípulo” pressupõe uma participação direta no trabalho da videira. Por isso, é importante "preparar os santos para a obra", como em Efésios 4. Outros pontos são muito notáveis no livro, como não haver justificativa para não congregar e a necessidade de instruir uns aos outros. O compartilhamento do que se aprende é uma função do discípulo, e não algo que cabe apenas à liderança e os pastores da congregação. A manutenção da videira é um trabalho de todos. O melhor exemplo disso aparece quando os tessalônios evangelizavam como se isso fosse um instinto natural, pois eram constantemente questionados sobre a razão de terem mudado de pensamento (reflexo de sua verdadeira conversão). Os autores argumentam que, uma vez que alguém se torna um discípulo (no sentido real e não aparente e teórico da palavra), segue-se necessariamente que estes discípulos falariam acerca de sua fé para outras pessoas. E isso acontece por várias formas, como ler as Escrituras, orar e compartilhar alegrias e tristezas com os irmãos.

O livro tem ótimos trechos, que são bem evidentes, mas nem sempre estão imediatamente em nossos pensamentos, tal como: “O cristão que não tem um coração missionário é uma anomalia.”

Um pouco mais pra frente, há uma simples justificativa para tornar justa a ideia de que devemos incentivar-nos uns aos outros a participar da obra como igreja: é assim que a Bíblia determina que seja feito. A unidade dos discípulos no Evangelho nos torna responsáveis uns pelos outros. E mais adiante, os autores propõem que um treinamento, no padrão bíblico, é um treinamento para agir de acordo com as Escrituras para alcançar objetivos. Paulo desenvolve uma espécie de treinamento em suas cartas do verdadeiro discipulado. O livro apresenta alguns estágios no crescimento do evangelho: evangelização, acompanhamento, crescimento, treinamento. 

Também aborda as diferentes ideias do pastorado e como alguns membros se comportam, tal como um cristão consumidor do tempo dos outros para satisfazer as suas próprias necessidades, pensando que só precisa ser servido, mas não possui nenhuma responsabilidade em relação aos irmãos em Cristo. Ainda há o caso das igrejas que adotaram o método “crescimento da igreja”, também oferecendo um produto para os “consumistas” e que não necessariamente implica em crescimento espiritual e mentalidade de discípulo (isso me lembra do termo do Dallas Willard para “vampiro cristão”, definido como “aqueles que querem apenas um pouco do sangue de Cristo”). Em contrapartida, o pastor treinador direciona para que todos os cristãos possam ser responsáveis pelo compartilhamento das responsabilidades da igreja. O serviço do pastor é fazer discípulos que façam mais discípulos. Há também uma ênfase na teologia de Baxter sobre a evangelização pessoal, do qual eu particularmente desconheço, mas é no mínimo interessante.

“Há mais pessoas do que podemos atender”. Os autores oferecem um cálculo lógico para a multiplicação de discípulos, apresentado em uma tabela onde o pastor faz discípulos capazes de fazerem mais discípulos. É necessário haver cooperadores e ministros que se sentem responsáveis a manter discípulos em constante crescimento espiritual. Mais pra frente, é apresentada a tese evidente de que “igrejas não fazem discípulos; discípulos fazem discípulos” e diversos preceitos para selecionar cooperadores para o reino tal como procurar pessoas que tem a mentalidade de trabalhar em prol do evangelho e compreendem perfeitamente as dificuldades que isso exige. E trabalhar para que essas pessoas sejam treinadas em suas convicções, caráter e piedade.

Até onde podemos ver, é evidente que é mais importante o crescimento do Reino de Deus do que o preenchimento dos bancos de uma igreja; portanto, acontecerá que pessoas com as quais gasta-se tempo treinando, futuramente farão discípulos em algum outro lugar diferente daquele em que foi discipulado. 

A grande comissão do discipulado é fazer discípulos capazes de fazerem mais discípulos. Participar de grupos ou ter igrejas cheias não indica que o foco no discipulado está sendo mantido. Entender o que é ser discípulo deve implicar em ser um discípulo. O alvo de toda estrutura da igreja é fazer discípulos. Discípulos produzem mais discípulos. O treinamento do discipulado consiste em uma atenção sobre as convicções, o caráter e a competência do próximo. Embora os membros de uma congregação possuam diferentes papéis dentro do ministério, a função de todos é ser e fazer discípulos. É preciso entender o que está causando a dificuldade de fazer novos discípulos. É preciso treinar pessoalmente e se preocupar com o futuro da igreja, sendo um modelo a ser seguido.

No final do livro encontra-se um trecho que me chamou muito atenção desde o instante que li pela primeira vez, e ainda mais vejo sua importância nos dias atuais. Os autores fazem uma espécie de experimento mental, imaginando a possibilidade de surgir uma pandemia em algum lugar do mundo, onde o governo limitaria o número de pessoas reunidas num mesmo local para no máximo três pessoas e tal decreto do governo entraria em vigência por no mínimo 18 meses. A questão óbvia é que nenhum pastor seria capaz de pastorear uma igreja com algo em torno de 120 membros. Seria extremamente improvável que as pessoas se sentissem pastoreadas com a rara visita do pastor ou ligação semanal ou quinzenal. Há pessoas que não são pastoreadas mesmo quando não há pandemia. Os autores então chamam a atenção para a necessidade de discípulos fazedores de discípulos. É uma pena que tal livro não recebeu tanta atenção e, a possibilidade de haver uma pandemia, algum crédito.

Onde está o conflito?

quinta-feira, 25 de junho de 2020

"Onde está o conflito?" é um dos grandes livros do filósofo analítico contemporâneo Alvin Plantinga. Neste livro ele trabalha exatamente o que o título sugere: há o conflito entre a religião e a ciência ou há um conflito entre o naturalismo e a ciência? Sua tese geral, já apresentada na introdução diz que há sim um certo conflito entre a religião - mais especificamente as religiões teístas como o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo - e a ciência, mas Plantinga defende que é apenas um conflito superficial; contudo, existe uma profunda concordância entre a ciência e a religião; e ainda, que há pouca concordância mas um profundo conflito entre o naturalismo - tese de que não existe uma entidade divina criadora do universo e que sustenta-o - e a ciência moderna.

É evidente que de nenhuma forma o cristianismo detesta a "ciência". Se assim fosse, os 65% dos ganhadores de prêmios nobel que são cristãos (embora seja verdade que nem todos prêmios desses 65% tenham sido científicos) estariam indo contra essa "lei cristã" de se opor à ciência. Isso para não citar Isaac Newton, Leibniz da Silva e a turma toda do passado que forneceu os pilares da ciência moderna e julgavam na crença da proposição "Deus existe" como verdade. Há quem diga que os medievais (cuja época é ridiculamente chamada Idade das Trevas) eram contra o conhecimento científico e acreditavam que a Terra era plana, e outras baboseiras inseridas no pensamento da época. A questão é que isso é apenas um pequeno grupo desinformado que vive nas redes sociais que tentam se passar por intelectuais. 

Mas será que algum filósofo pode dizer algo relevante sobre mecânica quântica, relatividade geral, psicologia evolucionista, estrutura molecular, complexidade irredutível, e outras tantas teorias científicas que são debatidas nas melhores universidades do mundo? Talvez o filósofo esteja limitado a entender do que se tratam esses assuntos ao invés de partir para o laboratório de realizar seus próprios experimentos, mas isso de nenhuma forma significa que o filósofo não está justificado em apresentar falhas em conclusões da ciência; ou até mesmo qualificar o que realmente é ciência e aquelas meras especulações ou conclusões precoces acerca de alguns resultados da ciência. Neste livro vemos que muitas especulações da ciência são, na verdade, metafísica (muitas vezes de péssima qualidade) e não ciência. Plantinga analisa as conclusões a partir de alguns experimentos científicos, e algumas outras inferências, e expõe com muita claridade a fraqueza de algumas das principais objeções à crença teísta.

Plantinga começa analisando o que seriam as "objeções mais fortes à crença teísta", ou pelo menos as mais famosas. E a mais famosa é a teoria da evolução - a tese de que todos organismos vivos como conhecemos hoje surgiram de um processo adaptativo lento, juntamente com mutações genéticas que conectam todas as espécies. Mas ele também demonstra que as "fortes" objeções dos chamados "cavaleiros do ateísmo", na maioria das vezes, nada mais é do que um argumentum ad derisionem (um nome bonito para um "argumento" via ridicularização). Parece que o que é mais convincente nos argumentos do ateísmo de Dawkins e Dennett, por exemplo, é essa tentativa de tentar ridicularizar a crença no lugar de "buscar a verdade seriamente" (como o próprio Dennett sugere), ignorando mais algumas das grandes respostas proporcionadas por alguns dos milhares de Cristãos que já existiram. Mas é evidente que ridicularizar uma crença não torna ela falsa, uma vez que a autoridade na filosofia é a demonstração de uma tesa, ainda que na maioria dos casos esta tese serve para descartar alguma outra teoria. É também falso que uma teoria é verdadeira porque ela é bastante atacada e ridicularizada. O critério de verdade é uma asserção metafísica e depende da validade da mesma. É de fato lamentável que mentes com capacidade de argumentar com bastante seriedade científica deixem se levar por questões emocionais acerca de suas crenças - ou talvez não consigam alcançar essa seriedade, mas OK.

No que diz respeito ao aspecto científico de seu conhecimento, Richard Dawkins talvez seja um grande biólogo, mas parece fazer muita confusão com as palavras em seus saltos metafísicos que utiliza para atacar as religiões teístas. Suas inferências são baseadas na confusão entre possibilidade e probabilidade, argumentando que, por ser possível que o processo evolutivo ocorra sem um Designer segue-se que é bastante provável que tal processo tenha acontecido. Ser possível que algo aconteça não segue-se que é provável que o mesmo aconteça. Plantinga identifica, assim como qualquer outra pessoa poderia identificar, que a tese de Dawkins de que "os dados da evolução indicam um universo sem design" não é propriamente um "dado" da teoria da evolução, mas uma interpretação a partir das obervações da ciência moderna. A tese de Dawkins é de que há indícios especulativos de que as transições ocorreram, dado os registros fósseis, mas Plantinga demonstra que nada nestas suposições elimina a possibilidade de que essa conexão entre uma espécie e outra não fosse dirigida. Essa hipótese, inclusive, não é nem mesmo descartada pelo assim auto-denominado "bulldog de Darwin", Thomas Huxley. 

A questão de a evolução constituir um derrotador para a crença no design cósmico parece estar localizada em que, se é possível e perfeitamente demonstrável que a evolução ocorre em baixa escala, segue-se que é provável que a macro evolução também ocorreria. Mas isso é claramente um salto metafísico muito grande, um non sequitur. A complexidade organizada da evolução parece apontar que a probabilidade de processos cegos terem produzido por si só organismos complexos parece improvável, dado o conjunto evolução & naturalismo (E&N). O que Plantinga quis demonstrar, é que o conjunto (E&N) são auto-refutáveis. 

O argumento central do conflito entre o naturalismo e a evolução se baseia no fato de que não há intencionalidade na evolução para produzir seres conhecedores de verdades, uma vez que a evolução somente proporciona aos seres a fome, fuga, reprodução e sobrevivência. A luta pela sobrevivência do mais apto parece não envolver crenças verdadeiras do universo. Plantinga então sugere que a probabilidade de que uma crença qualquer seja falsa dado que (E&N) se segue, é muito alta. Sendo assim, a própria crença de que (E&N) está em risco, uma vez que não é possível refletir racionalmente se a probabilidade de estarmos refletindo irracionalmente é alta. Alvin Plantinga cita sua grande influência para pensar deste modo, Thomas Reid: "Se a honestidade de um homem fosse colocada em questão, seria ridículo se referir a própria palavra do homem, sendo ele honesto ou não. O mesmo absurdo existe em tentar provar, por qualquer tipo de raciocínio, provável ou demonstrativo, que nossa razão não é falaciosa, visto que o ponto em questão é exatamente se a nossa razão pode ser confiada." 

O que se segue parece óbvio. A ideia é que, se fomos projetados por um Designer, nossas faculdades cognitivas se desenvolveram com a intenção de produzir em nós crenças verdadeiras, como crença no próprio Deus e proposições contingentes, como "a teoria da evolução é verdadeira", sendo que essa "intenção" foi guiada pelo Designer. Por outro lado, se não há qualquer Designer, não há nem mesmo como verificar racionalmente se estamos corretos em crer que não há um Designer, uma vez que não há intenção na evolução distinta daquelas necessárias para suprir as necessidades primitivas dos indivíduos.

Não é uma tese da ciência que o processo evolutivo não foi guiado. Na verdade, a probabilidade de indivíduos terem sua conexão estabelecida por um designer é perfeitamente racional, como Plantinga explica: "De acordo com a crença cristã, Deus nos criou de tal maneira que podemos conhecer e estar em comunhão com ele. Ele poderia ter feito isso de várias maneiras; por exemplo, ele poderia ter feito com que nossas faculdades cognitivas evoluíssem de maneira natural. seleção e evoluir de tal maneira que é natural formarmos crenças sobre o sobrenatural em geral e o próprio Deus em particular."

Uma objeção também bastante conhecida, é a ideia de que a mecânica quântica e o desenvolvimento da física moderna não deixa espaço para Deus dentro do pensamento contemporâneo pois, de acordo com boa parte dos cientistas, tudo pode ser explicado por alguma equação da física. O engraçado é que muitos desses cientistas simplesmente ignoram a contradição aparente entre a mecânica clássica e a física quântica. Uma das tentativas de evitar essa solução é a chamada "teoria das cordas" (ou "teoria M", ou "teoria das super cordas"), cujo número de dimensões do nosso universo necessário para a teoria funcionar é exatamente 11, ou algo assim. A teoria das cordas propõe que a estrutura mais fundamental da matéria são essas minúsculas cordas que, em suas vibrações semelhantes ao de um instrumento de corda, determinam e explicam o comportamento da matéria. Para esses "físicos" teóricos de hoje em dia, a teoria fornece o entendimento que eventos absurdos como um copo cair, quebrar, e o mesmo copo simultaneamente não quebrar mas sair andando é tanto possível quanto provável que aconteça, uma vez que a realidade é composta por 11 dimensões. Essa e muitas outras bizarrices são comumente admitidas pelos cientistas contemporâneos. Para outra turminha de "pensadores" engraçadinhos, não existem "leis da física". Mas parece que ambos grupos de "intelectuais" ainda creem ser absurda a ideia de um homem ressurgir dentre os mortos. O fato é que Plantinga explica que essa falta de critério no pensamento atual é bom motivo para não levar muito a sério essas teorias que tentam explicar a realidade.

Pra mim, não é claro o que se quer dizer com um evento sobrenatural, uma vez que não conhecemos todas as "leis naturais". Dentro da perspectiva naturalista, a questão é que se Deus age e muda uma "lei natural", deveríamos assumir a crença de que de fato não há "leis naturais", uma vez que se deve presumir que essa lei é capaz de fazer predições corretas; se as predições (caso um evento predito por uma e mesma causa anteriormente verificada causando outro evento idêntico ao evento anterior) podem ser mudadas, não existe "lei natural". Todos sabem que a mecânica quântica (que é contraditória com a relatividade geral) não consegue fazer previsões exatas na escala de Planck e, para tentar resolver isso, foi inventado outra teoria metafísica de péssima qualidade (da qual se dá o nome de "teoria das cordas"). O fato é que se pressupõe que vivemos em um universo de fecho causal, o que não faz parte da ciência contemporânea, mas de especulações infundadas. Aparentemente, Deus (um ser dotado de liberdade) precisaria de uma boa razão para mudar a ordem de um universo do qual Ele mesmo mantém (assim o é de acordo com a crença teísta); talvez atender a um apelo de algum outro ser dotado de alguma liberdade significativa, caso veja algum propósito nisso e evitando, é claro, multiplicar milagres sem necessidade (Navalha de Leibniz). Isso incluiria a crença de que Deus não intervém em um mundo onde Ele mesmo mantém uma ordem mas não exclui a possibilidade de "milagres" terem existido ou existirem atualmente.

Não estamos em poder de abandonar a nossa crença em Deus se somos produto de um processo evolutivo naturalista que produz coisas aleatórias, mas que conspiram para termos crenças verdadeiras sobre o universo e indica que de fato temos; isso por que nossa crença não provém somente de um exercício de raciocínio verificável pelo método científico, embora muitas decisões acerca da existência de um Deus seja claramente dedutível, mas de um testemunho interno que afirma que somos criaturas divinas. Mas nem por isso a crença em Deus deva ser considerada intelectualmente inferior à descrença. A questão é que, se fomos projetados por Deus ou pela evolução ou por ambos, para crer em um criador e nosso mecanismo cognitivo está funcionando apropriadamente para isso, deveríamos supor que estamos epistemologicamente autorizados a crer em Deus. Penso que de fato estamos.

Epistemologia

terça-feira, 2 de junho de 2020

Muito se afirma que o conhecimento faz parte de nossos dias. Mas sobre a natureza do que é conhecer, pouco é esclarecido por aqueles que afirmam conhecer. Que tais pessoas possuem conhecimento não depende, é claro, de estas pessoas possuírem apenas uma boa explicação para o que é conhecer, mas talvez de uma ou mais condições suficientes que sejam satisfeitas pelo sujeito conhecedor no processo de adquirir conhecimento de algo. Parece-me ser necessário que para julgarmos se uma pessoa possui ou não conhecimento, precisamos encontrar quais são essas condições que, sendo satisfeitas, possibilitam um sujeito qualquer a afirmar racionalmente que possui conhecimento de algo. Na verdade, o conhecimento científico é um tanto fácil de ser verificado, uma vez que exige uma certa repetibilidade dos eventos; diferentemente de proposições contingentes sobre o mundo, que por serem filosóficas necessitam de algum procedimento de raciocínio para se obter uma correta compreensão. É mais fácil de se argumentar sobre as ciências brutas, como quando assim o faz a Engenharia, do que analisar a Filosofia, ainda que exista muitos palpites. Bem, não vamos entrar em muitos detalhes acerca da natureza do conhecimento, mas tentar de alguma forma dar uma breve explicação introdutória sobre noções básicas em Epistemologia.

A Epistemologia é a área da Teoria do Conhecimento que analisa basicamente três coisas: "o que é conhecimento" se "é possível conhecer alguma coisa" e, caso seja possível o conhecimento, "como" o adquirimos. A palavra conhecimento na Epistemologia é classicamente conhecida pela definição dada por Platão como "opinião verdadeira acompanhada de explicação racional" ou, como nos tempos modernos colocou Roderick Chisholm, "crença verdadeira justificada". Também no grande livro da Epistemologia, temos a contribuição de Richard Feldman para expor melhor o problema do conhecimento em estados mentais, mas que ilustra como as proposições não se organizam em nossa mente:

"[O] conhecimento não é um puro ‘estado mental’. A condição de uma pessoa saber depende tanto de como sua mente é – o que ela crê e por quê – e como o mundo é. [...] Note que, o que quer que nós digamos sobre o conhecimento, pode haver casos de ‘crer verdadeiramente’ e de ‘crer falsamente’ que são introspectivamente indistinguíveis. Crenças verdadeiras não tem uma luz mais brilhante que as crenças falsas. Não há nenhum ‘V’ piscante diante do olho de sua mente quando você tem uma crença verdadeira. Não há nenhuma característica interna que acompanha todas e somente todas as crenças verdadeiras [all and only true beliefs]." 

É assim chamado crença   uma das condições do conhecimento na Epistemologia, porque ninguém pode conhecer alguma coisa que não crê. Essa impossibilidade lógica e epistêmica pode ser exemplificada na frase do Chapolin, que afirmou: "Eu não acredito em discos voadores, mas que eles existem, existem!" Bem, é óbvio que para conhecer algo, uma pessoa precisa crer que tal coisa seja o caso. A crença é uma operação do intelecto que julga. Julgar, assim como nos apresentou Kant, é qualificar proposições. Considere por exemplo uma maçã que realmente é vermelha. Nós a qualificamos quando dizemos "aquela maçã é vermelha" (juízo positivo verdadeiro); quando dizemos "aquela maçã não é azul" (juízo negativo verdadeiro); quando dizemos "aquela maçã é azul" (juízo positivo falso); e quando dizemos "aquela maçã não é vermelha" (juízo negativo falso). A crença, portanto, é uma condição necessária para o conhecimento. Jamais diríamos que uma pessoa que usa a percepção sensorial para experimentar algum objeto, mas crê que aquele objeto não está ali, possui de fato conhecimento sobre tal objeto.

A condição de verdade da proposição também é necessária para constituir um caso de conhecimento, pois ninguém pode conhecer algo que não seja verdadeiro. Aqui não se está discutindo a ideia de que é impossível obter conhecimento acerca de proposições que expressam falsidade, mas sobre a relação que essa proposição possui com a realidade. Que existem contradições foi algo que Aristóteles esclareceu; mas ele também argumentou sobre a impossibilidade de uma contradição subsistir. Uma das coisas contraditórias entre si deve (por uma questão lógica básica) subsistir, e a outra, deve ser necessariamente falsa. A verdade está mais para um condição metafísica do que epistemológica e, portanto, sua existência é pressuposta para ser possível analisar as condições de conhecimento. 

A terceira condição diz respeito ao processo de como adquirimos conhecimento, se ele é uma boa razão para um sujeito afirmar que possui conhecimento de algo. O conhecimento precisa se dar de alguma forma na mente do sujeito, pois o mero palpite destituído de qualquer justificativa, não convence quando se está determinando se há conhecimento sobre alguma proposição contingente. A justificativa é então, o terceiro critério a ser considerado quando se está analisando as condições de possibilidades de conhecimento.

Muitos filósofos destacam algumas fontes pelas quais obtemos conhecimento, seja ela uma fonte primária ou secundária de conhecimento. Um filósofo que expõe de uma forma clara essas fontes é Robert Audi, e afirma serem as fontes primárias a percepção sensorial, a memória, a introspecção e a intuição a priori (razão); e as fontes secundárias são a indução através da generalização e o testemunho. A diferença entre estas duas categorias de fontes é que nas fontes primárias o sujeito conhecedor não depende de fatores externos a si mesmo para possuir conhecimento de algo, mas sim dos seus próprios sentidos para conhecer. Já nas fontes secundárias é necessária uma espécie de confiança a mais de que os meios externos sejam verdadeiros e suficientes para gerar conhecimento.

A percepção sensorial é talvez a mais básica de todas as fontes, ou talvez a mais comum, e apela para os sentidos que o ser humano possui e que se relacionam com o mundo externo. Tais sentidos são popularmente conhecidos como a visão, o olfato, o paladar, a audição e o tato. Através desses sentidos, o ser humano se relaciona com os objetos do mundo e pode conhecer tais objetos vendo eles, ou ouvindo, etc.

A memória pode gerar conhecimento quando um sujeito qualquer apela para a sua própria memória de algum fato do passado para, a partir disso, saber no tempo presente que se julga possuir ou não o conhecimento. O fato de nos esquecermos de eventos do passado não se segue que no presente ou no futuro tal evento não possa vir à tona em nossa mente através da memória e, assim, gerar conhecimento sobre algo.

Na introspecção o sujeito reflete sobre verdades da lógica e da matemática e, sem apelar para o mundo externo, conhece verdades que podem ser provadas através da reflexão sobre a natureza de tais procedimentos introspectivos. E é também uma fonte primária de conhecimento, pois o sujeito conhecedor pode ter acesso imediato à essa fonte, apelando à própria introspecção para tal.

Na intuição a priori o sujeito conhece através de experiências anteriores aquilo que está diante dele. Ele sabe, por exemplo, que o todo é maior do que a parte. Da mesma forma como sabe que se A é maior que B, e B é maior que C, então A é necessariamente maior do que C. Não é necessário a experiência a posteriori para ele então conhecer o que se dará.

Já na indução o sujeito conhece, através de eventos anteriores particulares do qual experimentou ou outras pessoas experimentaram, inferindo daí uma generalização sobre tais eventos particulares. Existe uma certa probabilidade que está relacionada com uma espécie de garantia para o sujeito conhecer. A indução é muito utilizada na ciência, como quando inferimos que se há uma repetibilidade possível de se prever, então será sempre assim. Por exemplo, se todo objeto suspenso no ar ceteris paribus caiu após ser solto, infere-se que será sempre assim a partir da generalização desses eventos particulares.

O testemunho é também uma fonte de conhecimento muito válida. E é talvez a fonte mais utilizada por nós. Quando alguém executa algum experimento em laboratório, é relatado em algum livro ou artigo, tudo o que aconteceu e então tais informações são compartilhadas com as pessoas que possuem interesse no experimento. Na ciência, isso é muito comum. Há, aliás, uma infinidade de pessoas que executaram os mesmos experimentos e relataram resultados idênticos aos que foram primeiramente testados. Em certo sentido, não é necessário que todas pessoas vão a um laboratório executar o mesmo experimento para saber se o relato dos experimentos anteriores são corretos. Mas, dado a confiabilidade dos experimentos anteriores, aceita-se como um testemunho válido que tais procedimentos foram devidamente executados. Isso acontece em diversas áreas de nossa vida. Não analisamos se o médico é realmente formado e capaz de nos diagnosticar e medicar; não analisamos se o farmacêutico não nos enganou, substituindo o remédio da caixa por algum outro qualquer; não examinamos o próprio remédio antes de ingerir, ou se a água da torneira não foi envenenada. Antes, cremos através do testemunho que nenhuma destas coisas listadas conspiram contra nós. E de fato, quase sempre estamos justificados a crer assim.

Em se tratando da justificativa para as crenças, os epistemólogos diferem no que diz respeito ao processo como essa justificativa se dá no indivíduo. Os internalistas argumentam que a justificativa para a crença gerar conhecimento depende de critérios internos na mente do sujeito conhecedor. Já os externalistas creem que os critérios para conhecer estão fora do sujeito.

No ano de 1963, um filósofo chamado Edmund Gettier problematizou a análise clássica de conhecimento, argumentando que há casos de crença verdadeira justificada onde não se constitui caso de conhecimento. Em seu artigo (de apenas duas páginas!), ele apresenta dois exemplos que evidenciam que as condições da análise clássica são no mínimo insuficientes. Um de seus contra exemplos se segue mais ou menos assim: Jones e Smith trabalham em um lugar onde eles sabem que um dos dois será promovido, mas Smith crê que quem será promovido é Jones e Smith sabe que Jones possui dez moedas em seu bolso. A partir disso, Smith infere a seguinte proposição: "o homem que será promovido possui dez moedas no bolso". Acontece que quem será promovido é o próprio Smith e, sem que ele saiba disso, ele também possui dez moedas em seu bolso! Sendo assim, sua crença "o homem que será promovido possui dez moedas no bolso" é uma verdade, mas por ter sido uma mera coincidência que Smith creu nessa proposição, os epistemólogos argumentam que Smith não conhece (sabe) que "o homem que será promovido possui dez moedas no bolso". Gettier problematizou tanto a análise clássica do conhecimento que milhares de páginas foram escritas para tentar solucionar seus contra exemplos. Mas não há como tratar de tudo aqui.

O ceticismo é uma crença que põe em cheque a possibilidade de conhecimento, ou pelo menos não podemos conhecer algumas coisas em específico. Céticos pirrônicos, por exemplo, negam que literalmente nada pode ser conhecido, nem mesmo esta própria afirmação de que "nada pode ser conhecido"! O famoso e antigo Trilema de Agripa é um argumento cético e que impõe algumas justificativas pelas quais não é possível conhecer, que se segue com: (a) as razões para o conhecimento continuam indefinidamente; (b) as razões terminam num ponto em que não há mais razões disponíveis para apoiar as últimas; (c) as razões circulam em torno de si mesmas. Assumir um trilema de Agripa como verdadeiro é claramente uma petitio principii e um ad hoc. Não podemos justificar o trilema sem uma espécie de "Prior Grounding Requirement". O fundacionalismo epistêmico consente que as opções (a) e (c) sejam céticas mas nega que (b) o seja; o coerentismo afirma que (a) e (b) são céticas, mas nega que (c) o seja.

A epistemologia é uma área da filosofia extremamente vasta, e seus interesses se estendem sobre a moralidade, racionalismo, ciência, religião, etc., mas acredito que esse texto serve para dar uma breve introdução e despertar um pouco mais de interesse sobre o tema.

Simplicidade

terça-feira, 12 de maio de 2020

Certa vez estava andando por uma cidade quando vi, em uma parada de ônibus, uma frase que dizia "a simplicidade é o último grau de sofisticação". A primeira coisa que pensei foi algo mais ou menos assim: "bah, mas que besteira!". Acho que besteira mesmo foi ter pensado isso sem ter refletido no sentido da frase antes de tentar discordar dela. Ainda bem que está dentro das regras da vida mudar de opinião de vez em quando. Para falar a verdade, eu pessoalmente já mudei bastante ao longo desta vida.

Eu não sei exatamente quem disse tal frase, mas pensando sobre isso hoje em dia, me vejo analisando a simplicidade com muito mais cuidado do que outrora tinha e com quase atenção suficiente que ela merece. Parece um desejo natural nosso tentar fugir da simplicidade como se ela fosse algo terrível. Talvez seja terrível mesmo o sentimento que ela produz de que não somos indivíduos únicos e que a complexidade nos faz superiores aos outros indivíduos que, teoricamente, são simples demais para dedicarmos nossa atenção. Mas a simplicidade não procede de um reducionismo onde a busca pelo melhor é substituída por ornamentos preguiçosos. A simplicidade não deleta propriedades intrínsecas do indivíduo e se compõe pela ausência de criatividade.

Estou me referindo aqui da simplicidade de uma pessoa e seus atos, sua linguagem, honestidade. Não de estruturas fundamentais do Universo. Não devemos confundir aqui o ser simples com o ser simplista. O simplista é na verdade aquele que tenta reduzir o irredutível, tentando dar soluções demasiadas breves para problemas milenares! É como tentar  resolver um problema psicológico tal como borderline, ou ainda uma correlação EPR, com uma regra de 3: não vai dar certo e ainda quase ninguém será convencido. Explicar é rastrear as causas. 

Um dos mais importantes conceitos de simplicidade é a famosa Navalha de Ockham, que diz que "as pluralidades não devem ser multiplicadas sem necessidade". É um tanto fácil perceber a razão pela qual este princípio é fundamental tanto no método científico quanto no cotidiano. Uma fórmula simples sobre alguma teoria qualquer deve ser preferida àquela formulação extremamente complexa e que diz a mesma coisa. Isso acontece por que as condições de verificabilidade são evidenciadas na formulação mais simples; o que não ocorre na mais complexa, ainda que diga a mesma coisa. A probabilidade de engano no instante da verificação é menor quando se trata de algo mais simples. Um problema que ocorre é que nem sempre é tão fácil de produzir simplicidade enquanto se está tratando de temas complexos. No cotidiano, isso também é verdadeiro. Imagine, por exemplo, que alguém tente lhe dar algum golpe, apresentando alguma possibilidade de benefício muito grande pela troca de algum outro produto ou serviço a ser trocado. Deve-se querer saber o que se trata antes de tomar decisão e, se não está simples o suficiente, alguém acaba sendo persuadido ou decide que tudo deve ser melhor esclarecido.

Há necessidade, acima de tudo, de pessoas simples. Que não ficam se emaranhando em coisas vãs e improdutivas o tempo todo. Pessoas que não ficam, como o personagem Sherlock Holmes sugere, no livro "Um estudo em escarlate", poluindo constantemente suas mentes para coisas desnecessárias. São pessoas assim que tornam a vida mais agradável, textos mais acessíveis, teorias mais verificáveis, problemas mais solucionáveis, e assim por diante.

Vida intelectual

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Até onde posso ver, a vida intelectual não é sinônimo de curiosidade. A curiosidade busca o saber desenfreado sobre coisas aleatórias e desconexas uma das outras. O curioso parece não saber muito para onde quer ir. Absorve todo tipo de informação que não lhe é proveitosa e não sabe o que vai selecionar para se especializar, muito menos o que fazer com o que sabe. Entra num site científico aqui, outro de notícias ali. Passa a noite entre sites anteriormente desconhecidos, pulando de um link para outro. E às vezes retorna para as coisas inúteis que esqueceu. Sua "pesquisa" é como num labirinto onde a pessoa que está perdida evita de contemplar o caos antes de tentar resolvê-lo de imediato.

Esse problema da curiosidade também é muito comum no meio filosófico, uma vez que o filósofo, como dizem, é capaz de ler variados tipos de assuntos e tem "estômago de bode". Se o bode come de tudo, eu não sei e pouco me interessa aqui. Mas parece que é verdade que muitos "filósofos" querem demonstrar supremacia intelectual ao poder palpitar sobre qualquer assunto, uma vez que se informaram sobre o que se está sendo debatido. (Coloquei filósofos entre aspas pois há uma grande diferença entre o estudante de filosofia que entende pouco sobre muitos assuntos e aquele que sabe muito sobre um determinado assunto e é capaz de pensar por conta própria.)

Mas isso não parece ser um problema somente dos "filósofos". Há também entre não acadêmicos esse problema de querer palpitar sobre tudo sem, na maioria dos casos, ser um entendedor do assunto. A razão de tal procedimento humano talvez devamos deixar para algum psicólogo responder. Mas é bem comum entre muita gente querer ser um participante da conversa, afinal, quem quer parecer intelectualmente inferior por não poder "palpitar"? Os curiosos e outros impertinentes não ficam calados, atentos ao que está sendo dito, mas estão o tempo todo preparando algum ponto relacionável ao que está sendo dito. A questão é que, como sugeriu o filósofo Mário Ferreira dos Santos, na filosofia (aqui ele sugere que é na filosofia, mas creio que também deve ser em muitos outros assuntos cotidianos, que também deveriam ser discutidos de uma perspectiva filosófica, evitando falácias e ordenando o pensamento lógica, epistemológica e metafisicamente) a única autoridade é a demonstração. Demonstrar é rastrear a razão de pensar daquela forma e não simplesmente acreditar no que se está sendo afirmado. E é também evidente que não se pode acertar em todos os raciocínios, ainda que sejam bem fundamentados e complexos.

Pode sim parecer um pouco presunçoso ou arrogante o termo "vida intelectual". Mas quero me referir ao fato de que há sim pessoas que se dedicam a saber mais sobre um determinado assunto do que o habitual. Que não se apóia em palpites sobre enunciados complexos fazendo alguma forma de reducionismo significativo ou caindo na "falácia da ignorância". O intelectual sabe para onde vai e tem um direcionamento em seus estudos; evita dispersões ou as informações inúteis. Sabe evitar também a "orgia da literatura". 

Argumento e coerência

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

É verdade que não devemos sustentar uma teoria simplesmente pelo fato de haver argumentos à favor de tal teoria. Pois, se pensarmos bem, há argumentos para quase tudo que se pode imaginar (pra não dizer literalmente tudo).

Parece ser um absurdo, mas de fato há argumentos para a planicidade da Terra. Há também argumentos sobre o Nazismo ter sido de direita tanto como ter sido de esquerda. Como eu escrevi acima, há de fato argumentos sobre tudo que é verdadeiro, e ainda também sobre coisas que são falsas. Não estou julgando aqui nenhum dos argumentos, mas sobre a natureza de argumentar.

Muitas argumentações foram apresentadas para sustentar teorias que hoje em dia praticamente ninguém acredita. Mas a maioria das pessoas não acredita nessas teorias, pois lhes foram apresentadas contra-argumentações que, teoricamente, refutam o argumento anteriormente apresentado e propondo uma nova interpretação à realidade. Mas o fato de existir argumento à favor de uma teoria não implica necessariamente que tal teoria é verdadeira.

É até aceitável sustentar um argumento por sua solidez lógica, mas isso de nenhuma forma implica que o argumento em si é verdadeiro e que não há posições contrárias que possam invalidar o argumento. Isso me lembra do trecho do livro "O homem sem qualidades", que diz: "Imagine o que acontece hoje em dia: quando um homem importante coloca uma idéia no mundo, ela é imediatamente submetida a um processo de distribuição que consta de simpatia e repulsa; primeiro, os admiradores arrancam grandes nacos que mais lhes agradam, e devoram o seu mestre como raposas devoram carniça; depois, os adversários eliminam os pontos fracos, e, em breve, de toda a façanha nada sobra senão uma provisão de aforismos, dos quais amigos e inimigos se servem. O resultado é uma ambigüidade generalizada. Não existe um sim no qual não se possa pendurar um não. Você pode fazer o que quiser, sempre encontrará vinte das mais belas ideias a favor e, se procurar, vinte contra."

O argumento depende primeiramente de sua validade. Mas também de sua consequência conclusiva seguir necessariamente de suas premissas, que precisam ser verdadeiras. E mais: é preciso que a teoria resista a contra-argumentos que possam refutar a teoria. Mas é também verdade que os próprios contra-argumentos podem sofrer com algum outro contra-argumento, que invalida a suposta refutação. Nesse sentido, o debate pode se estender para uma longa batalha de argumentos contra e à favor de uma teoria qualquer.

O fato é que muitas vezes ignoramos as contra-argumentações e procuramos argumentos para tudo que queremos provar. Nesse procedimento, já temos respostas prontas para as contra-argumentações daquilo que sustentamos, num procedimento de pura vaidade e tentativa de demonstrar toda nossa incapacidade de ouvir com atenção argumentos contrários aos que sustentamos. Mas é também evidente que não devemos suspender o juízo sobre qualquer tipo de conhecimento apenas pelo fato de haver argumentos para tudo. Creio que devemos é analisar qual argumento se aproxima mais com a realidade para então sustentarmos ele como sendo o mais próximo da verdade, e aceitar a mudança de opinião, se for o caso.

Pode ser o caso que há sim algumas vezes em que vemos argumentos mais sólidos do que aqueles que sustentamos e que, deveriam mudar tanto o modo como vemos o mundo quanto implicar em algo mais que ações de nosso pensamento, isto é, o nosso procedimento prático no mundo. Não deveria ser vergonhoso mudar o procedimento de nossas ações quando somos convencidos de uma ideia, mas é um fato de que um argumento possui muito mais influência em nossos pensamentos do aquilo que deveria se desenrolar na vida prática. Tal me parece ser a razão de parecer mais fácil ficar disputando argumentações infinitas e buscando argumentos e rejeitando contra-argumentos para sustentar uma teoria: a disputa fica mais interessante quando se está apenas no pensamento e não na realidade, pois talvez tanto o mudar de opinião quanto agir coerentemente com isso é tido como humilhante para muitas pessoas. Isso por que devemos primeiramente admitir que estávamos errados. E depois por que talvez dê algum trabalho mudar o hábito.

Talvez em algum texto eu apresente uma formulação lógica complexa (também é aparentemente verdadeiro que o complexo é mais convincente) de que devemos amar o nosso próximo. Segue-se necessariamente que estou amando meu próximo? Não parece ser o caso que seja assim sempre.  Talvez surgirão muitos argumentos contra e à favor da prova lógica, mas não se segue que as pessoas vão agir coerentemente com o que estão argumentando.

Logo, pode ser o caso em que nossa incapacidade de agir corretamente influencie em como e no quê queremos argumentar, sempre procurando uma forma de dar razão aos argumentos para sustentar alguma ideia, ainda que não sejamos coerentes com ela. Talvez alguém escreva contra essa postagem. Mas o que me importa agora é estar atento para o que estou argumentando e ser coerente com isso, e ouvir com atenção argumentos opostos ou que ajudem a melhorar tanto o procedimento intelectual quanto prático.

A finalidade da Beleza

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Quando pensamos sobre a natureza daquilo que é Belo, deixamos de lado as outras coisas que julgamos não ser. Se por acaso dizemos que em tal coisa não há Beleza alguma, estamos na verdade dizendo que em outro lugar há. Se tentamos aniquilar o conceito de Belo negando critérios objetivos como fundamentação daquilo que é Belo, de nenhuma forma se está sendo refutado que há coisas Belas, ainda que o método científico ou alguma teoria verificacionista não pode provar a validade da Beleza. A questão é que tomarei por evidente aqui a existência de algo da qual denominamos Beleza para, então, meditar um pouco sobre sua utilidade.

Um grande problema que parece surgir quando refletimos sobre a Beleza é que ela parece prima facie inútil. Parece na verdade que ela não tem uma utilidade pública ou particular, como abastecer reservatórios de água ou ainda realizar uma cirurgia de ponte de safena. E realmente parece ser o caso que a Beleza não serve pra essas coisas, a menos que alguém creia que a Beleza por si só pode religar artérias do coração de alguém. Bem, eu não creio nisso também.

Mas eu não estou argumentando que a Beleza serve pra tudo (e também desconheço se há quem assim argumente). Ninguém falou que a finalidade da Beleza é resolver uma Conjectura de Goldbach ou reduzir os impostos. Isso seria muito bom inclusive, mas não creio que devemos desprezar uma música clássica por que ela não resolve os problemas da corrupção. Creio que utilizar exemplos particulares contingentes para fazer uma generalização é uma péssima forma de utilizar o raciocínio. 

Muito bem, vamos lá. Qual é então a finalidade da Beleza? Já sabemos para o que ela não serve, e a lista pode ser muito grande! Já tendo uma noção do que o Belo significa para nós, precisamos agora apontar algumas coisas que exemplificam a necessidade de coisas belas na vida do ser humano. Vou tentar ilustrar um ou outro exemplo da finalidade da Beleza. 

Considere por exemplo, uma pessoa que fará a cirurgia de ponte de safena. Por que exatamente ela quer continuar vivendo? Ora, se o Belo também é manifestação do Bem, como colocou Platão, então essa pessoa tem boas razões para preferir a vida do que se entregar à morte. Essa pessoa quer melhorar seu estado de saúde para contemplar o belo durante um tempo mais extenso. Ela quer se relacionar ainda mais com as pessoas que ela gosta e estender seus instantes de relacionamento com essas pessoas tanto quanto aquilo que é naturalmente belo. Talvez ela queira visitar lugares agradáveis aos seus olhos tal como um parque onde há pássaros cantando, ou ainda uma obra de arte.

Não estou argumentando que precisamos necessariamente estar sob pena de morte para encontrar uma finalidade na Beleza. A Beleza como expressão sensível também nos alegra diariamente, com toda suas variadas formas de expressões que, sendo o caso de estarmos tristes, podemos encontrar algum consolo por estas infinitas coisas Belas que podemos presenciar. A Beleza satisfaz não somente nossos olhos quando estes contemplam a ordenação da natureza ou leem o Soneto 116 de William Shakespeare; nem tão somente os ouvidos quando apreciam uma boa música como Comptine d'un autre été. Mas tanto os olhos quanto os ouvidos direcionam o que é belo à alma, que contempla e se alegra com tantos sentimentos que podem ser expressos pelas infinitas, mas não exaustivas formas de Beleza dispostas em nosso mundo. A Beleza educa a alma.

Um lugar que me chama bastante atenção sobre a significância da Beleza é a Bíblia Cristã. Há alguns trechos específicos que podem clarear um pouco aquilo que eu entendo de significante para a utilidade da Beleza; mas também a Bíblia expressa sua própria razão de argumentar em favor da existência do que é belo. "Os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir", é o que diz Eclesiastes. A Beleza é uma dessas coisas que dão sentido à vida e tal é a razão que nossos olhos não se cansam de ver, nem nossos ouvidos se cansam de ouvir. Mas sempre procurando aquilo que é belo e agradável de se contemplar e ouvir, evitando-se as coisas que são irritantes aos nossos olhos e ouvidos.

Quem é que não se alegra ao olhar o céu estrelado durante a noite? Bem, há muitas pessoas que nem mesmo olham para o céu estrelado, talvez por suas cidades serem poluídas o suficiente para não conseguirem enxergar muita coisa, ou ainda por realmente não se interessarem por tal tipo de coisa. O fato de poucas pessoas se interessarem por um céu estrelado pode estar relacionado à péssima influência das mídias sociais, uma vez que não se pode tirar "selfies" com a Lua ou fazer outro tipo dessas coisas que estão na moda. O fato é que eu realmente duvido que as pessoas que ignoram a Beleza conseguem possuir verdadeira felicidade, se é que o Belo está relacionado com o Bem e com uma verdadeira contemplação das coisas que são perceptíveis aos nossos sentidos e agradáveis à nossa alma.

É também lamentável o fato de que muitas de nossas cidades são horrorosas. Tanto prédios e casas são feias e desorganizadas quanto os fios de energia elétrica, outdoors e outras coisas das ruas deixam uma péssima vontade de caminhar por esses lugares. Dá uma tristeza ainda maior quando essas disposições arquitetônicas são somadas ao péssimo gosto musical de algumas outras pessoas. Bem, mas isso tudo não significa que não há qualquer coisa bela disposta para nossos olhos e ouvidos. Acredito que basta se interessar um pouco mais sobre o que a Beleza pode proporcionar para a alma, e isso não é algo que se pode encontrar em qualquer texto (eu julgo que esse texto aqui ainda não está perto o suficiente de ser belo) ou simples fotos do Google. Acredito que valha mais a pena seus olhos e ouvidos buscarem coisas belas além do computador ou celular, pode ser mesmo o caso que a Beleza sirva para alguma coisa.

"Uma é a glória do sol, outra, a glória da lua, e outra, a das estrelas; porque até entre estrela e estrela há diferenças de esplendor" (1 Co 15:41). 

Beleza x Inteligência

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Refletindo insistentemente sobre esses conceitos há algum tempo, venho tentando, com meu próprio raciocínio, formular noções que satisfaçam um pouco daquilo que eu entendo que esses conceitos significam pra mim e tentar associar um com o outro. Portanto, quero fugir um pouco das definições que tentam associar o Belo com "aquilo que agrada a todos" ou que se baseiam na sua utilidade.

Acredito que a Beleza de algo está diretamente relacionado com algum padrão identificável em que dizemos: "Isto existe aqui e em outro lugar, mas não existe ali." Esse padrão identificável é somado à outra qualidade da qual nosso intelecto separa das coisas desorganizadas e imprevisíveis. Na soma destes padrões em relação àquilo que é fora de padrão, julgamos algo como ou sendo Belo ou então feio. Não estou dizendo assim que a Beleza é eterna no sentido que sempre existiu e não há uma forma nova contemplável, mas que nosso intelecto julga (isto é, qualifica) com maior facilidade aquilo do qual está acostumado a perceber, dado a sua simplicidade na qual tal facilidade ocorre.

Me parece que o padrão da Beleza pode ser identificado como uma razão entre a combinação de cores, traços, formas geométricas, etc. Talvez não seja somente estas coisas ou somente uma delas, mas uma combinação simples e capaz de ornamentar um padrão entre um e outro objeto. Por exemplo, um flor é mais bela que uma pedra, pois esta não possui um padrão na qual podemos identificar traços e cores organizadas, mas aquela é formada por um caule, folhas, pétalas, cores, etc. Enquanto a flor parece um fim em si mesma com toda sua composição colorida e sua forma geométrica que respeita o padrão de ser uma flor, parece que a pedra é um produto de um acidente da natureza da qual ela mesma poderia ter sido diferente.

Mas não apenas fatos concretos ou objetos são Belos. Eventos também o são. O conjunto do florescer, do pássaro cantar, do vento soprar, do meteorito atravessar o céu, etc., nos encanta mesmo que não seja um ponto fixo no espaço-tempo como qualquer outro objeto contemplável. 

Creio ser possível dizer que a Inteligência é quando conseguimos gerenciar diversas áreas de nossas vidas sem com isso perder a cabeça, como que um dom para organizar eventos e se comportar com simplicidade diante deles, não julgando-se superior aos outros ou utilizando do conhecimento que o intelecto possui para se separar de outras pessoas. Não vejo por inteligente as pessoas que desprezam outras por possuírem um grau menor de conhecimento. Vejo como sendo como um simples possuidor de uma grande quantia de conhecimento, tal como um computador qualquer.

Me parece que o intelecto não foi feito para destinar-se apenas para uma única coisa e fazer dela a única busca real. A Inteligência não é a simples capacidade de gravar informações e poder repetir elas a qualquer momento. Computadores fazem isso. E por não acreditar em inteligência artificial, eu também não creio que a Inteligência deva ser reduzida a um procedimento de decorar infinitas coisas e entender elas.

Poderia ser dito que a Inteligência é a capacidade do intelecto de resolver questões difíceis da vida, ou equações da ciência ou matemática, ou ainda da lógica, etc. Mas eu acredito que a Inteligência é a capacidade do intelecto de ser o mais simples possível diante de tantas coisas complexas e Belas. É viver com uma simplicidade não reducionista que torna perfeitamente inteligível aquilo que está complexo demais para o intelecto saber. Creio que este procedimento intelectual é também uma forma de como o intelecto corresponde para aquilo que é destinado. Ora, se o intelecto é destinado a se inclinar para um conjunto de coisas que ele precisa atender, a Inteligência deste intelecto é elevado se ele consegue atender todo o conjunto de coisas e negligencia pouco ou quase nada do qual é a sua real função.

Nesse sentido, me parece que a Inteligência também é Bela, dado que é um tanto previsível e orquestra um padrão próprio de administrar o melhor possível a combinação de qualidades que o intelecto possui. Esse padrão não é motivo nenhum de tédio por sua previsibilidade e simplicidade, mas uma garantia de contemplação duradoura que provavelmente perdurará tempo suficiente para nossa vontade criar boa expectação do futuro.

Talvez alguém diga que todos objetos são extremamente complexos em sua essência. De fato parece ser o caso. Se analisássemos a estrutura molecular de organismos, o que veremos é uma complexidade irredutível. Mas nem por isso devemos argumentar que eles não são simples no sentido de que há um determinado padrão entre eles.

Ora, até onde posso ver, na Beleza há esse conjunto de padrões que, bem organizados, deixam a coisa Bela. Também na Inteligência há esse padrão de comportamento um tanto previsível. Tal é a razão que pessoas menos dotadas de intelecto parecem ser imprevisíveis e instáveis, como se não soubéssemos se ela vai salvar o mundo ou destruí-lo. Parece que esse tipo de pessoa abençoa num dia e amaldiçoa no outro. Tal é a razão pela qual eu analiso a Beleza de uma pessoa também por sua Inteligência.

Posso estar distante ainda do verdadeiro significado dessas palavras, é claro. Mas eu apenas tive esse insight sobre a possibilidade de conectar estas duas coisas entre si, que penso ser bem justificável essa conexão. Pode ser o caso que no futuro eu altere uma ou outra coisa, seja o caso de eu pensar diferente em algum sentido ou receber algum comentário que me faça adicionar algum ponto relevante a ser observado.

Previously on Lost...

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Pensando sobre a série Lost, fui questionado qual era meu personagem favorito, já que eu assisti a série mais de uma vez. O meu pensamento imediato foi de que nenhum deles era perfeito em todos os sentidos. Sempre houve algum instante em que os personagens falhavam em algo importante. Bem, isso parece ser comum na vida de qualquer pessoa, mesmo que ninguém busque falhar. Então este comentário não foi algo tão importante assim.

Acho que ao querer apontar para o "personagem favorito", seja de filme, série, desenho ou qualquer outra coisa, queremos apontar para "aquele com o qual nós mais nos identificamos" ou "que age de acordo com aquilo eu faria se estivesse naquela situação". Porque diríamos que é nosso personagem favorito se não nos causa certa admiração ou desejo de imitar? Nesse sentido, é engraçado tentar imaginar o que se passa na cabeça das pessoas que admiram vilões. 

Bem, a minha resposta foi que o personagem mais impressionante da série Lost é John Locke, um personagem que, estando sob cadeira de rodas antes de cair na ilha, recebe um "milagre" e começa a caminhar imediatamente que o avião cai sobre a ilha. O nome deste personagem é uma referência ao filósofo britânico do século XVII, mas não me parece ser apenas um nome de um personagem qualquer. O filósofo é autor de uma tese que argumenta como sendo o trabalho como o fundamento da propriedade e cujos limites podem ser estabelecidos a partir daquilo que é possível consumir.

Na série, John Locke parece ser o único que imediatamente reconhece a riqueza da ilha, tanto que aparece comendo uma laranja e dando um grande sorriso já no primeiro episódio. Mas ele não é egoísta e tenta acumular os bens da ilha para si mesmo, tanto que propõe caça aos javalis para alimentar o grupo, utiliza do seu tempo para construir um berço para o bebê da Claire que está prestes a nascer, ajuda com ferramentas e não com o produto final. Ele também ajuda para que Charlie escolha livremente abandonar seu vício com a heroína, oferecendo a ele a chance de não lhe pedir a substância que o estava escravizando. Ele mostra para Charlie um casulo do qual poderia utilizar sua faca para facilitar que a borboleta então saísse dali, mas que esta não teria forças suficientes para sobreviver sozinha, dado que não se esforçou para vencer aquilo que a estava impedindo de seguir adiante. Ele explica que poderia simplesmente destruir a heroína de Charlie, mas que essa não seria uma decisão que faria de Charlie uma pessoa forte para a vida.

Locke reconhece que a ilha em que se encontra é um lugar especial e me pareceu ser o único que não se aterrorizou com isso, mas se sentiu maravilhado por tanta beleza e riqueza que a ilha poderia lhe dar. Ele diz em um episódio: "I've looked into the eye of this island, and what I saw... was beautiful" (eu olhei dentro do olho desta ilha, e o que eu vi... era lindo). Sua curiosidade em descobrir o que a ilha realmente é, me parece ser uma atitude razoável diante de tanta coisa que acontece na série. 

Mas diferentemente do filósofo empirista, o personagem John Locke era um homem de grande fé. Ele era guiado por suas intuições e sonhos, sempre buscando sentido em tudo que observou em uma profunda conexão com a ilha. Ele era um homem de esperança, ainda que às vezes se fundamentava em falsos pressentimentos. Muitas vezes ele se sente perdido e sem resposta do por quê as coisas acontecem de determinada forma e não saem como o planejado.

A reação de Locke ao receber uma nova oportunidade na vida é aceitar este recomeço aproveitando ao máximo o lugar onde está. Jacob afirmou que todos tinham uma vida infeliz antes de chegarem na ilha e por isso ninguém fora retirado de um mar de rosas; e Locke afirmou para Shannon que a ilha era uma oportunidade para todos recomeçarem as suas vidas. Mas é somente Locke que de fato está satisfeito por estar na ilha e quer fazer de tudo para lá permanecer. 

A questão é que Locke estava cansado de tudo de ruim que havia passado antes de chegar à ilha. Sua viagem para uma aventura na Austrália fora frustrada por algo muio triste. Sua vida em geral fora bastante decepcionante: seus pais o abandonaram para adoção, até o momento em que, estando ele próximo dos 50 anos, seu pai aparece na vida dele e lhe "rouba" um rim (pede gentilmente que Locke doe um rim mas depois ignora-o como se fosse nada). Mais pra frente, Locke descobre que seu pai está envolvido na morte de um garoto e decide intervir, até o momento que o próprio pai o empurra pela janela, do oitavo andar. Ele afirma mais tarde para Linus que sentiu sua coluna ser esmagada! Locke fica em torno de 4 anos em uma cadeira de rodas sem aproveitar nada da natureza da qual tinha tanta vontade de fazer suas trilhas e aventuras. Ele viaja para Austrália mas não consegue participar da sua aventura dada a sua condição de cadeirante.

Pode ser dito também que esses traumas que Locke possui cooperam para que ele se sinta mais à vontade na ilha. Tanto ele quer ficar que destrói o comunicador com o qual Sayid está tentando buscar uma forma de sair da ilha e dá a Sayid uma bússola estragada; destrói um submarino, destrói a estação de comunicação com o mundo externo, etc. Parece que há algo do passado que ainda atrapalha um pouco o seu caminho na ilha. Linus argumenta com Locke que este ainda estava meio perdido, e que seu propósito não era ainda tão bom quanto poderia ser até que se libertasse desses traumas do passado.

Tendo conseguido esquecer do que o passado lhe assombrara, Locke agora está disposto a proteger a ilha. Sua missão é impedir que pessoas más façam mau uso das coisas boas que a ilha possui de belo e valioso. Ele então passa a liderar um grupo de pessoas que também estão dispostas a proteger a ilha e veem em Locke a pessoa mais sábia para dar sequência nessa missão. Mas alguns eventos tornam muito difícil o que Locke precisa fazer para que as coisas "voltem ao normal". 

Acredito que tu deves saber o que ele acaba fazendo e como ele termina. Locke insiste para que Jack não saia da ilha, mas permaneça lá para cooperar com a proteção da ilha. Jack então argumenta que aquele lugar não precisava ser protegido pois era apenas uma ilha qualquer e então Locke certeiramente profetiza que sair da ilha iria corroer o coração de Jack até que ele quisesse insistentemente voltar. Locke então precisa se sacrificar para salvar a ilha e seus amigos.

Bem, Locke não me parece ser apenas um personagem de uma série de TV. Ele parece um ser humano num planeta belo e desconhecido onde coisas estranhas das mais variadas acontecem. Não é o nosso planeta uma ilha isolada entre tantos outros planetas? 

Parece que também deveríamos utilizar corretamente os recursos da Terra e contemplar o que há de belo por aqui, aceitando que esta é nossa condição agora, até que algum dia nos mudemos para outro lugar. Sabemos que apesar de tudo que há de belo aqui disponível, o nosso passado ainda pode nos assombrar de vez em quando, até o momento em que possamos nos libertar completamente de tudo de ruim que aconteceu e tomar o fardo de proteger o presente que nos foi dado: o milagre de estarmos caminhando conscientes enquanto todos os outros animais não possuem qualquer capacidade de olhar na volta e ver o quão belo são todos estes atos! Parece-me haver uma fonte de energia para este planeta tanto quanto existia na ilha. O fato é que muitos de nós parecem ignorar isso como se fosse algo muito comum.

Deixamos que nossa incapacidade de responder todas perguntas ou de entender o mundo nos assole e deixamos de estar satisfeitos com nossa posição, sempre querendo "sair daqui e ir para ali". Mas deveríamos contemplar aquilo que está em nossa volta.

O meu desejo é o de alguma forma imitar Locke nesses sentidos positivos, e poder dizer "I've looked into the eye of this island, and what I saw... was beautiful"...

Metaconhecimento?

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Rogel de Oliveira é o epistemólogo mais minucioso que eu conheço, e o seu livro "Metaconhecimento e Ceticismo de Segunda Ordem" talvez seja a melhor prova disso. Com muita clareza conceitual (que é marca da filosofia analítica), Rogel analisa as condições de possibilidades de metaconhecimento, isto é, se há alguma possibilidade de alguém "saber que sabe" e como isso poderia acontecer.

O autor começa analisando algumas das principais discussões dos últimos 50 ou 60 anos da Epistemologia, e trabalha nos casos Gettier, que contrapõem a análise clássica do conhecimento que Platão destaca no diálogo Teeteto. Conhecimento seria como Roderick Chisholm melhor colocou uma "crença verdadeira justificada". Edmund Gettier explicou (em um artigo de duas páginas!) que há casos onde há "crença verdadeira justificada" que não constituem casos de conhecimento. Para fugir desse problema, Rogel adota a solução de Klein sobre a teoria de que a justificativa para a crença não ser derrotada (defeated), e considera como satisfatória essa solução.

Muitos autores parecem inferir que o conhecimento de algo implica necessariamente o metaconhecimento de tal saber. Mas é evidente que não vivemos em um mundo de oniscientes lógicos, onde todos são epistemólogos e possuem capacidade de propor justificativas bem elaboradas sobre tudo o que conhecem (se é que de fato conhecem o que creem conhecer). Contudo, o metaconhecimento precisa ser devidamente analisado e resistir a contraexemplos (talvez como os contraexemplos tipo Gettier) para considerar-se razoável e satisfatória a ideia de que alguém "sabe que sabe". O problema que o autor nos demonstra neste livro, é que em qualquer análise de metaconhecimento apresentada até então, não há algo que deixa evidente que o critério para "saber que se sabe" não é falacioso. Muito pelo contrário, Rogel expõe que todas as tentativas de aceitar as condições apresentadas claramente pressupõem o que querem provar e caem em uma circularidade epistêmica falaciosa. O critério para "saber que sabe" parece ser fundamental para analisar a possibilidade do metaconhecimento.

Tendo o cenário do conhecimento sobre proposições contingentes do mundo sido estabelecido, Rogel parte então para o problema do metaconhecimento analisando o que os autores modernos apresentaram como o cenário para metaconhecimento. Uma definição de metaconheimento fica como sendo algo mais ou menos assim:

Metaconhecimento (df) =

(i’) S sabe P;

(ii’) S crê que S sabe P;

(iii’) S está justificado em crer que S sabe P; e

(iv’) A justificação de S para crer que S sabe P não é derrotada ou defeituosa.

A condição de metaconhecimento é então apresentada em algumas teses, tais como JJ e JK (meta justification & justified on knowing) para gerar KK (know that knows), e suas tantas variações:

(JJ) Se S está justificado em crer que P, então S está justificado em crer que S está justificado em crer que P [Jsp → JsJsp].

(JJ1) Se P é evidente (para S), e se S considera se P é evidente, então é evidente (para S) que P é evidente [Esp & CsEsp → EsEsp].

(JK1) Se P é evidente para S, e se S considera a proposição que S sabe P, então é evidente para S que ele sabe P [Esp & CsKsp → EsKsp].

(JK2) Se S está justificado em crer que P, e S crê que S sabe P, então S está justificado em crer que S sabe P [Jsp & BsKsp → JsKsp].

(JK3) Se P é evidente para S e se S crê que P, então é evidente para S que ele sabe P [Esp & Bsp → EsKsp].

(KK1’) CsKsp & Ksp → KsKsp.

(KK2’) Ksp & BsKsp → KsKsp.

Contudo, como Rogel muito bem analisa, nenhuma das teses é satisfatória, pois são falaciosas em algum sentido, principalmente por pressuporem o que querem provar (petitio principii). A pressuposição cometida é inferir que a partir da possibilidade de conhecimento de proposições contingentes se pode também obter metaconhecimento. Isso fica claro na tese da identidade das evidências de 1ª e 2ª ordens: 

"A evidência que produz um estado normativo-epistêmico de primeira ordem também produz o estado normativo de segunda ordem que tem o primeiro estado como seu “objetivo”. Em particular, a evidência que produz justificação de primeira ordem é a mesma que também produz justificação de segunda ordem”.

Outra falácia sobre a possibilidade de metaconhecimento é novamente inferir que a partir do conhecimento sobre proposições contingentes sobre o mundo, é possível conhecer que se está conhecendo, tal como apresentado no "Argumento da Avaliação Epistemológica (AAE)":

(1) “Todas as condições necessárias para o conhecimento (de primeira ordem) de P foram satisfeitas no meu caso”,

(portanto)

(C) “Eu sei P”.

Parece claro o "salto" que há entre (1) e (C).

O problema das teses de metaconhecimento até então apresentadas é pressupor que o estado mental que analisa o "saber que sabe", e que está analisando a si mesmo, pode gerar alguma evidência absoluta para o metaconhecimento. O "fecho epistêmico" (epistemic closure) não garante que saber de uma proposição qualquer implica também saber que se sabe essa proposição. 

Logo no fim, Rogel também rejeita as "soluções" chamadas como o "argumento do histórico" (de que um conjunto de crenças sobre metajustificação satisfaz o critério para metaconhecimento) e o "bootstrapping" (apelar para a própria justificação internista para justificar a mesma), pois estes também caem em circularidades. A condição de não derrotabilidade das crenças que satisfaz o critério para conhecimento não satisfaz o critério para metaconhecimento. Logo, não faz sentido apelar a própria razão para saber se esta é ou não falaciosa. A solução padrão ao problema do critério cai em uma circularidade epistêmica, assumindo como verdadeira em uma das premissas a própria conclusão que se quer provar.

O problema principal é que S não está justificado em crer que não há derrotadores para sua crença que sabe p sem cair em uma circularidade epistêmica. Rogel então rejeita qualquer tese de metaconhecimento "extrafácil" que cai em falácias e conclui que é mais racional suspender o juízo sobre "saber que sabe" e adotar um ceticismo pirrônico de segunda ordem. Sua conclusão, é claro, não deve ser confundida "não há metaconhecimento", mas de que parece ser impossível alguém estabelecer um critério confiável para "saber que se sabe".

Fatalismo e a Lógica

terça-feira, 19 de novembro de 2019

O fatalismo afirma que, se um evento futuro tiver que acontecer, ele necessariamente acontecerá. Logo, não é apenas verdade que um evento e do futuro acontecerá, mas que é impossível que o seu oposto (¬e) ocorra. Será que isso é verdade? Ao ler o artigo "Fatalism and the Future" do Craig Bourne no "The Oxford Handbook of Philosophy of Time", vi ali uma forma bem simples de rejeitar o fatalismo, utilizando lógica modal. Entretanto, é preciso observar cuidadosamente o que cada fórmula propõe e seguir a argumentação passo a passo.

Para iniciar, é importante propor o universo semântico da lógica que aqui utilizaremos. Considere os seguintes operadores lógicos:

p = p é o caso, onde p é uma proposição qualquer sobre o mundo;

⊃ =  se... então (implicação);

□ = é necessário que (necessidade);

¬ = não é o caso que (negação);

∧ = e (conjunção);

∨ = ou (disjunção)

∴ = conclusão.

Agora que temos nosso "dicionário" de operadores lógicos básicos, considere, por exemplo, uma proposição "c" qualquer. Digamos que c = chove. Sendo assim, infinitas proposições comuns podem ser criadas a partir desses operadores. Tais como:

¬ c = não chove.

c ∨ ¬ c = chove ou não chove.

c ⊃ ¬ s = se chove então não está ensolarado (onde s = está ensolarado)

etc

Tome agora a lei de não contradição:

¬ (A ∧ ¬A)

A partir dessa lei (que parece bem óbvia), é impossível que duas coisas contraditórias entre si subsistirem ao mesmo instante e sob o mesmo aspecto. Logo, é evidente que um evento e seu oposto (isto é, o evento não que ocorre) não podem existirem simultaneamente. Portanto, a fórmula a seguir é contraditória e impossível:

c ∧ ¬ c

Devemos entender que é impossível que as proposições que afirmam que chove e que não chove são, sob mesmo instante e aspecto, verdadeiras. Uma delas apenas deve ser verdadeira e a outra, consequentemente, falsa.

Nesse sentido, podemos também afirmar que é necessário que amanhã, ou choverá ou não choverá, ainda que não saibamos qual dos dois acontecerá. Considere a proposição sobre o futuro de que choverá amanhã como Ac. Logo,

Ac = choverá amanhã

E a proposição correspondente ao oposto de choverá amanhã é obviamente ¬ Ac.

O que temos, assim como colocou Aristóteles, fica assim: é necessário que a disjunção sobre o evento futuro é verdadeiro; mas é falso que um deles acontecerá necessariamente. Ora, é fácil saber que, necessariamente, ou choverá amanhã ou não choverá amanhã, do qual utilizamos a fórmula lógica:

□(Ac ∨ ¬ Ac)

Alguém diria que, se é verdade que choverá amanhã, então segue-se necessariamente que choverá amanhã. Mas não é possível derivar (Ac ⊃ □Ac) a partir de □(Ac ⊃ Ac). O que nós temos é apenas a disjunção de que é necessário que um ou outro aconteça, mas não de que aquele que acontecerá, necessariamente acontecerá.

Talvez também pudesse ser dito que, se existe um ser onisciente, ele saberá o valor da proposição sobre o futuro e, portanto, segue-se necessariamente que tal proposição será o caso. Considere que a proposição choverá amanhã é verdadeira e, de fato, choverá. Logo, a fórmula de é verdade que choverá amanhã é representada por v(Ac) e seu oposto por f(Ac).

Mas não se segue que por tal ser onisciente (Deus) possuir conhecimento sobre o futuro, que ele determina o futuro fatalisticamente, sobretudo em relação à ações de seres possuidores de liberdade libertária. Eis então como rejeitar esses valores como necessários:

1. v(Ac) ⊃ □Ac

2. ¬□Ac

3. ∴ ¬v(Ac)

e

1. f(Ac) ⊃ □¬Ac

2. ¬□¬ Ac

3. ∴ ¬ f(Ac)

Portanto, ¬[v(Ac) ∨ f(Ac)]. Isto é, não é o caso que, ou é verdade que choverá amanhã ou é falso que choverá amanhã.

Ora, também não é necessário que Deus cause o futuro muito antes de este chegar. Se Deus é sustentador do universo como os teístas costumam dizer, ele pode causar um evento no presente do futuro de tal evento de acordo com sua própria vontade perfeitamente livre, no lugar de "causar" num tempo t1 tal evento que ele quer que aconteça no tempo t5. Acredito ser totalmente possível Deus "esperar" o instante t5 chegar para então causar uma chuva, se é que em t5 ele vê como razoável que deve chover. Nesse sentido, podemos tanto rejeitar o fatalismo sobre eventos futuros quanto argumentar que Deus não é "escravo" do futuro, como costumam objetar alguns ateus.

Mas é claro que não estou dizendo que o argumento acima é perfeitamente verdadeiro. Mas ele pelo menos me parece ser verdadeiro e suficiente para os seus propósitos.

Natureza

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Um dos pensamentos que me veio à mente após mais um momento de contemplação da Natureza, foi algo próximo do que Pascal e Chesterton argumentaram sobre a relação do homem com a Natureza.

Chesterton pensava ser errôneo o pensamento naturalista de afirmar ser a Natureza a nossa mãe. "Se olharmos bem", diz ele, "a Natureza seria mais bem vista como uma madrasta". Acredito que Chesterton está argumentando sobre uma espécie de indiferença ou irresponsabilidade que a Natureza possui para com o ser humano. Ele continua e escreve: "O ponto principal do cristianismo é este: a Natureza não é nossa mãe, a Natureza é nossa irmã. Podemos orgulhar-nos da sua beleza, desde que temos o mesmo Pai. Mas ela não tem nenhuma autoridade sobre nós." A ausência de autoridade consiste em  reconhecer que é o homem que manipula a Natureza à sua volta, e não o oposto, ainda que às vezes sofra as consequências de péssimas administrações dela. Deveríamos cuidar bem de nossa "irmã menor", que é um presente do mesmo Pai.

De fato a Natureza não tem nada de mãe. Nem por isso ela é menos bela por ser menor do que nós, com toda sua extensa, mas não exaustiva lista de cores, sabores, formas geométricas, sons, força, etc., ou ainda a combinação de diversas qualidades que a Natureza possui. A Natureza de fato é belíssima e talvez meu (ou qualquer outro) vocabulário seja demasiado pobre para descrever a sua beleza, ainda que seja bem possível descrever suas qualidades. Mas não vou fazer aqui descrições de objetos ou tentar argumentar o quão bela a Natureza é. Acredito que não devemos chamar a Natureza de mãe ,pois ela por si só nos atiraria em um mundo sem qualquer instrução ao longo do percurso sobre o que deveríamos fazer aqui.

Blaise Pascal expressa um pensamento também muito interessante sobre o como a Natureza é valorativamente menor do que o ser humano. Ele escreve: "A grandeza do homem é grande por ele conhecer-se miserável; uma árvore não se conhece miserável. É então ser miserável se conhecer miserável, mas é ser grande conhecer que se é miserável." Me parece muito real o fato de que as árvores (pelo menos as que não fazem parte de Nárnia) não escutam ou falam ou mesmo pensam qualquer coisa. Apenas nisto já é possível perceber a grandeza do homem em relação à qualquer objeto da Natureza que, ao que me parece, não possuem algum conhecimento de si ou mesmo do mundo exterior. Mas Pascal escreve mais: "Ainda que o universo o esmagasse, o homem seria mais nobre do que aquilo que o mata, pois ele sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele. O universo de nada sabe."

Há uma teoria de que se tu ficares ofendendo uma planta por muito tempo, ela seca e morre. Bem, vamos desconsiderar este tipo de pensamento por aqui. Aliás, não façam isso com as plantas e menos ainda com qualquer outra pessoa. Palavras podem matar pessoas, de fato.

Bem, não é errado se sentir maior em valor do que a Natureza, isso é ser realista. Mas é também necessário reconhecer que poderíamos imediatamente morrer sob qualquer estalo em nosso cérebro causado por algum evento na Natureza. Só posso escrever isto tudo porque minha disposição de sentidos (a visão, o olfato, o paladar, a audição e o tato) está direcionada a levar a informação até o cérebro, que apreende quase tudo o que recebe e transforma em conhecimento. De fato não depende apenas da existência de objetos na Natureza ou de seres capazes de conhecê-la mas, como sugere Platão em sua "Alegoria do Sol", ainda precisamos da Luz (que também pode ser chamado "razão") para conhecer os objetos na Natureza.

Nossa "irmã menor" ainda seria tão bela ou com sua devida grandeza se não houvesse seres capazes de a contemplar? 

Concluo que somos sim valorativamente maiores do que a Natureza e toda a sua infinita beleza e que devemos sim contemplar tudo o que está disponível para nós. Mas também que ser um conhecedor de si próprio e do mundo externo é ainda mais belo. A Natureza pouco conhece a si mesma. Se temos o mesmo Pai, ele certamente se preocupou muito mais com a grandeza do ser humano do que com a Natureza.

Não nos contentamos em seguir regras: queremos uma justificação para elas

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O filósofo Immanuel Kant foi sem dívidas um dos mais significantes escritores da história. Seu profundo conhecimento de correntes como o Racionalismo e o Empirismo e, também, seu conhecimento da Física de Isaac Newton, fizeram de seus escritos filosóficos um material fundamental no pensamento de cientistas como Albert Einstein. Kant é justamente associado ao Iluminismo. Foi responsável por destacar a diferença entre o uso público e o uso privado da razão; a autonomia e liberdade do intelecto humano ou a dependência do saber a partir daquilo que os outros pensam.

 Em seu livro denominado “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, Kant busca um critério objetivo para a fundamentação da moralidade que não possa ser intitulado simplesmente como uma lei onde alguém a obedece apenas por inclinação ou pressão social. O objetivo é a busca e fixação de um princípio supremo de moralidade. Para que tal procedimento ocorra, ele argumenta que o sujeito precisa agir com sua “boa vontade”; e é esta boa vontade que determina e encaminha o bom procedimento de ações e seria de certa forma importante para a felicidade do homem. Faz uma separação entre as pessoas que agem conforme o dever e as pessoas que agem por dever.  Agir conforme o dever é agir através de inclinações sociais. Agir por dever é agir por respeito à lei como um valor moral. Se uma pessoa agiu apenas por “cálculo interesseiro”, entende-se que não há aí qualquer sinal de boa vontade, mas alguma vontade de satisfação pessoal e desejo de não universalização da máxima. 

O filósofo formula um procedimento de como testar se a máxima que o indivíduo pretende adotar pode formar uma lei universal que qualquer um pode consentir com ela. Seu procedimento é intitulado “Imperativos Categóricos”. As formulações dos imperativos categóricos são: (a) age apenas segundo uma máxima (subjetiva) tal que possas, ao mesmo tempo, querer que ela se torne uma lei universal (princípio objetivo), ou seja, age apenas segunda uma lei universal da natureza; (b) age da maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa quanto na pessoa do outro, sempre e simultaneamente como um fim e não simplesmente como um meio, ou seja, agir com o consentimento da pessoa; (c) age de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma, ao mesmo tempo, como legisladora universal. 

Kant argumenta que devemos nos indagar através dos imperativos categóricos que “se eu, sendo autônomo em minhas ações, quero que minha máxima seja universalizada”. Se minha máxima puder ser aplicada para todos os seres racionais, esta máxima vai entrar naquilo que se deu o nome de “comunidade moral ideal”. É partir dos imperativos categóricos que devo analisar se quero que minha máxima se torne um princípio objetivo e que, portanto, deve ser seguido universalmente. Embora habitualmente usemos as pessoas como um meio e nem sempre como um fim, Kant argumenta que o problema está em usar a pessoa simplesmente como um meio, ou seja, que a pessoa deve consentir com o que está sendo feito.

Imagine a seguinte situação: um menino chamado Astrolábio quer aprender um pouco de física nuclear e decide ir até o MIT (Massachusetts Institute of Technology) questionar ninguém menos que Ian Horner Hutchinson para aprender o que quer. Ele então chega no professor e faz seus questionamentos. É perceptível que Astrolábio não está usando o Dr. Hutchinson como um fim em si mas como um meio de obtenção do conhecimento que ele tanto quer, mas também é claro que Astrolábio não está usando-o simplesmente como meio: o Dr. Hutchinson sabe claramente da intenção do menino Astrolábio e este age de tal forma que admite que qualquer outra pessoa poderia fazer o mesmo. Há um consentimento entre ambos e a máxima do menino Astrolábio passa pelo teste de universalização no instante em que assume que qualquer um pode fazer o mesmo que ele fez.

Agora imagine o caso onde um outro menino chamado Polvo, recebe discretamente um tríplex como propina. O que o Polvo está dizendo é “posso receber algum benefício em troca de atos ilícitos”. Mas é nitidamente óbvio que Polvo está utilizando sua máxima apenas para si mesmo e não o quer que todo indivíduo faça o mesmo que ele fez. Talvez ele queira que algum outro grupo restrito a sua própria vontade faça isto. Se o Sr. Polvo decide pensar “vou receber propina” e de fato assim agir mas o Sr. Polvo não quer que pessoas saibam que está recebendo seu desejado tríplex em troca de alguns favores extra oficiais ou saibam mas não devem agir de tal forma, então temos aí um problema, pois no fim das contas ele está violando o critério da universalização da máxima que Kant argumenta ser fundamental em qualquer procedimento.

Entende-se que a razão deve evitar contradições e esta ocorre quando alguém, em determinada situação, defende uma teoria mas quer abrir exceção em algum instante que lhe convém. É pregar uma máxima que deva ser aplicada apenas em casos isolados. Entendo eu que isto deve ser evitado.

Se alguém faz algum cálculo e percebe que o resultado final de todo o procedimento da sua vida será mais abundante desgraça do que alegrias, mas ainda assim é capaz de impedir a si mesmo de acudir seu desejo interno de adiantar sua sentença de inevitável sofrimento e, portanto, não tirando sua própria vida, ele na verdade está querendo dizer que outros indivíduos diante da mesma circunstância de suicídio devem da mesma forma, suportar os sofrimentos como um dever que comporta valor moral. A contradição está quando o indivíduo defende a teoria de que na sua circunstância de calamidade está justificado a cometer suicídio mas quer abrir exceção de sua máxima para outra pessoa, como por exemplo, um familiar. Quem quer retirar a própria vida deve estar querendo dizer que esta sua máxima pode se tornar uma lei universal que comporta valor moral – o que me parece um tanto absurdo.

Se Kant consegue, a partir dos imperativos categóricos, formular um critério objetivo para a moralidade é algo bem discutível. Alguém poderia argumentar, por exemplo, que a indiferença moral parece ser o melhor procedimento num mundo onde não há evidências em favor da objetividade da moralidade; embora alguns pensadores argumentam que tal procedimento seria contra intuitivo e impossível de viver assim, dado um sentimento profundo de valoração do próximo que é mais do que as análises naturalistas dizem sobre tais procedimentos. Mas isso é algo que comentarei em outra postagem.

Concretismo x Atualismo

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Concretismo é o nome de uma teoria em metafísica exposta pelo grande filósofo americano David Lewis, que também era famoso por utilização de substâncias alucinógenas. Lewis possuía uma crença radical concernente à teoria dos mundos possíveis do qual deu o nome de concretismo, mas que também é chamada de realismo modal: mundos possíveis não são meramente possíveis como quando se fala no mundo atual e sua contingência, mas eles são tão reais quanto o mundo em que vivemos e existem no sentido bruto da palavra. 

É importante aqui fazer um breve comentário sobre a confusão entre mundos possíveis e mundos paralelos. Vou apenas deixar claro o que não é um mundo possível e no decorrer do texto ficará mais clara a tese dos mundos possíveis. Imagine que um menino Astrolábio viajou por zilhões de quilômetros pelo universo e encontrou uma dimensão ou uma forma de acessar algum mundo onde as pessoas, eventos, línguas, ciências, etc., são repetições idênticas ou extremamente semelhantes às que podemos presenciar aqui neste mundo e universo: Astrolábio não está em um mundo ou universo diferente do atual. Mundo possível é uma tese metafísica; mundo paralelo não. 

De acordo com Lewis, os mundos possíveis são "atuais" para os habitantes de outros mundos, embora seja impossível haver qualquer conexão causal entre um e outro mundo. Também não é possível fazer qualquer tipo de observação sobre o que acontece em algum dos infinitos mundos possíveis, nem pra mandar uma mensagem no WhatsApp.

O argumento de Lewis para o concretismo se forma no fato de que nem todo conhecimento que possuímos exige um contato causal com o objeto conhecido; podemos conhecer verdades matemáticas sem apelar para nossas experiências sensoriais. A partir disso, Lewis infere que da mesma forma os mundos possíveis possuem realidade efetiva e podemos ter conhecimento disso, mesmo com a condição de impossibilidade de qualquer conexão causal entre um mundo e outro. 

Sendo assim, mundos possíveis são mundos da mesma forma que o nosso, eles apenas não são atuais para nós por não se poder indicar o "aqui" e o "agora" dos objetos, propriedades, etc.

Lewis, diferentemente do filósofo Alexius Meinong, não admite a possibilidade de que objetos impossíveis ou mundos impossíveis possam existir. Em sua teoria dos objetos, Meinong formula a ideia de que objetos impossíveis tal como círculos quadrados "absistem" dado o valor de sua mínima disposição ontológica. A partir de algo que ele chama de ser-tal ("sosein") é possível afirmar que a representação de alguma forma de "objetos impossíveis" indica que o conteúdo dessa afirmação "absiste". As ideias de Meinong pareciam indicar que mesmo objetos não atuais e impossíveis não possam existir "aqui" e "agora", deveria existir algum mundo possível onde qualquer objeto possível de ser pensado, mas aparentemente impossível de ser representado deveria, de alguma forma existir em algum mundo possível. 

Mas me parece que não deveríamos apenas depender da intencionalidade do pensamento para inferir propriedades absurdas e argumentar que a partir dessa possibilidade de valor ontológico de referência, tudo que é objeto do pensamento deve existir. 

Os filósofos atualistas têm como seu maior defensor atual o filósofo americano Alvin Plantinga. Para os atualistas modais, mundos possíveis são os infinitos modos de como as coisas poderiam ser. E nesse sentido, parece evidente pensar nessas infinitas possibilidades e modos de como as coisas poderiam ser diferente. Não parece verdadeiro que muitos eventos ou propriedades do mundo atual devem ser necessariamente como o são. Podemos pensar, por exemplo, naquele instante em que dizemos para nós mesmos: "eu deveria ter escolhido A no lugar de B". O que estamos dizendo, nesse caso, é que nossa escolha é uma contingência e que "existe" (é um estados diferente de coisas atuais) algum mundo possível onde efetivamente aquela pessoa escolheria A no lugar de B, se fosse o caso de tal mundo ser atual. 

Plantinga então argumenta que outros mundos não são "realizados", embora pudessem ser. Para ele, mundos possíveis não são entidades concretas instanciadas, mas que tais mundos possíveis não realizados são apenas entidades abstratas, ainda que seja possível de alguma forma especular muito sobre tais mundos possíveis.

Chorar?

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Muito já foi dito que chorar tem algum valor, seja para reconhecer externamente as dificuldades e tristezas da vida ou para demonstrar, ainda que involuntariamente, a nossa insatisfação ao reconhecermos que o mundo não é exatamente como queremos que ele seja. Aliás, ainda bem que o mundo não é como queremos e existem muitas razões para pensar nesse problema. Na verdade é logicamente impossível que o mundo seja "como queremos que ele o seja", dado as diferenças de crenças em que mentalmente operamos. Crenças contraditórias não subsistem na realidade. É, portanto, impossível que seja realizável um mundo de acordo com a vontade de mais de uma pessoa.

Mas não quero falar sobre o simples ato de chorar. Pois sempre houve alguns melindrosos que não aguentam qualquer dificuldade que já desandam a chorar infinitamente sem poder aguentar o mínimo possível de dificuldade. O choro deles é como uma daquelas pessoas ali acima que lutam proverbialmente (e só) para a necessidade de o mundo real ser do modo que eles querem, não conhecendo ou se conformando com o fato aparentemente evidente de que é impossível criarmos um mundo de acordo com nossa própria vontade. Quero falar sobre o benefício do ato de chorar e citar algumas fontes do passado que também reconheceram a importância das lágrimas. Eis adiante alguns comentários.

Começarei por uma fonte antiga e que se encontra no livro do Eclesiastes, capítulo 7 e versículo 3, que diz: "Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração." É óbvio que o escritor do livro não é masoquista ou é bipolar por dizer que chorar é melhor do que rir, ou ainda que rir é algo ruim e que o riso deveria ser extinto da face da Terra. Acredito que o que ele está querendo argumentar é sobre a natureza e o poder de reflexão que a lágrima pode trazer em relação ao riso. Raramente estamos em condições de refletir sobre a vida e nossas fraquezas enquanto estamos rindo; do contrário, a mágoa acaba por produzir um estado de reflexão no coração do sensato que é melhor do que o riso. 

Outra passagem que achei interessante sobre o ato de chorar é descrita no livro do psiquiatra sobrevivente do Holocausto e criador da Logoterapia, Viktor Frankl. Ele descreve um caso onde outro prisioneiro relata que "curou os edemas da fome" ao chorar e lamentar-se por tudo aquilo que estava acontecendo. Nesse caso também o realismo (que é diferente de um pessimismo) diante da situação gera um efeito positivo tanto no estado psicológico da pessoa quanto na aparência externa.

O próprio Jesus, como que não podendo ou querendo evitar sentir o sofrimento do próximo, derrama lágrimas ao avistar a cidade de Jerusalém e refletir sobre a consequência mortal dos pecados; Ele também chora com Maria, após ver que ela estava profundamente triste com a morte de seu irmão. E é ainda bem provável que em sua Agonia no Getsêmani, muito chorou avistando a infinita dor da separação de Deus da qual estava prestes a experimentar na morte de cruz. Jesus não chora fingidamente e nem desiste de tudo por causa dos seus sofrimentos, mas observa avidamente a efetividade do Plano Divino, numa certeza absoluta de que o ato final de sua vida é consumador das iniquidades, e que a morte não é o fim, mas um recomeço.

Gostaria de poder escrever sobre o fim do livro "Crime e Castigo", de Dostoiévski. Mas não quero dar spoilers e nem ser tão exaustivo aqui. Perguntem-me sobre isso.

Não devemos também tentar evitar que uma criança chore diante do sofrimento e da dor que sente, em uma tentativa de represar a sua lágrima estamos na verdade impedindo que esta criança aprenda a reconhecer as dores e sofrimento desta vida, algo que certamente é impossível de fazer. Um dia ou outro ela irá sofrer e precisará chorar por isso. Devemos ensinar a elas que a dor um dia passará e que chorar diante de situações que não estão em nosso poder de ser diferente é a primeira coisa que podemos fazer.

Acredito que o fato de não externarmos o que pensamos ou sentimos acaba por dificultar o nosso progresso na vida. Mas não é um simples ato de externar tudo o que vêm à mente sem qualquer reflexão sobre tais pensamentos, pois há ainda muitos que preferem externar suas convicções irrefletidas num egoísmo perverso ou até mesmo num ato de externar fingido e destituído de qualquer sentimento realista sobre a própria condição. Externar em lágrimas é fazer da consciência algo que encontra a realidade da nossa vida cheia de sofrimentos. É como Hannah chora no final do filme "O grande ditador", desabafando consigo mesma e reconhecendo sua humanidade frágil contrastada ao pensamento mecânico da época; mas numa esperança de que algum dia toda lágrima secará e haverá uma consolação que perpétua toda extensão do futuro para aqueles que não vivem indiferentes para a realidade.

Aquele que nunca chorou, que atire a primeira lágrima.

Ex lingua stulta veniunt incommoda multa

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Bah! O grande matemático e lógico do século XX Kurt Gödel costumava dizer que quanto mais ele refletia sobre a linguagem, tanto mais se admirava como as pessoas conseguem se comunicar umas com as outras. Confesso que não entendi muito bem o que ele quis dizer... Brinks!

A linguagem é um elemento fundamental em qualquer tipo de relacionamento, seja quando alguém quer elogiar ou até mesmo ofender outra pessoa. A linguagem também é utilizada para muitas outras coisas, tal como identificar plágio, ou ainda estilos linguísticos. É usada também para poesia, contos, descrições de ambientes ou ainda estados psicológicos; a linguagem também serve para criar humor.  Usamos a linguagem para demonstrar que não entendemos algo – ou pelo menos deveríamos usar quando for o caso, mas às vezes fingimos que entendemos simplesmente para não ficar com o status de intelectualmente inferior –, usamos também para demonstrar alegria, tristeza, esperança, desespero, satisfação, desgosto, confiança, suspeitas, ironia, e tantos outros sentimentos.

Mas a linguagem também é útil para entender tudo isso. Sendo assim, a linguagem é efetiva em um relacionamento qualquer, quando pressupõe tanto um sujeito x que expressa uma proposição p, quanto um sujeito y que compreende tal proposição. De nada serviria a linguagem de alguém sem um sujeito receptor que compreende o significado dos mecanismos da linguagem. É como na analogia do Sol na República de Platão. Talvez a um estudante de filosofia, alguém poderia perguntar, por exemplo, se aquele já conversou com um sofá. A resposta, após uma análise da sutileza da ironia, seria algo como: "sim, ele disse sente-se". Mas ao tolo devemos responder de acordo com suas necessidades, é claro, pois seus esforços para aperfeiçoar a comunicação são quase nulos, e os resultados, zero. Os objetos nada dizem diretamente. Mas é necessário entender esses problemas de linguagem.

É verdade que nem sempre optamos por utilizar a linguagem da melhor forma possível. Tome por exemplo um caso no livro "o idiota" onde um homem está fumando seu charuto dentro de um trem, próximo a duas senhoras que estão sentados em sua frente, insatisfeitas com a fumaça produzida pelo charuto dentro do trem. Existe uma linguagem inicial entre o fumante e as duas senhoras, que expressa pela insatisfação das senhoras. O caso se segue com o homem fumando tranquilamente seu charuto pra fora da janela, pois segundo ele, estas senhoras estão falando em inglês e, portanto, não estão falando nada. Ele considera que deveriam falar algo, seja com palavras em Russo (se fosse possível pra elas) ou com alguma outra expressão de gentileza que demonstrasse o desejo de que este senhor apagasse o charuto ou jogasse ele pela janela. O senhor inclusive diz que é pra isso que serve a linguagem! A senhora que está com um pequeno totó prefere então dar preferência a uma linguagem mais agressiva e decide arrancar-lhe o charuto das mãos e atirar pela janela! Não me perguntem porque ela faz isso. Mas a resposta utilizada por este senhor é pior ainda. Ele então agarra o pequeno totó que está no colo de uma das senhoras e o atira pela janela, atrás do charuto!

Outro caso que achei interessante sobre a linguagem está localizado no "Senhor dos Anéis". Samwise, tendo muitas razões para crer que o seu amado amigo estava morto, decide dar sequência no plano de destruir o Um Anel. Após descobrir que Frodo estava vivo, Sam decide imediatamente devolver-lhe o anel para que Frodo carregasse novamente esse fardo terrivelmente pesado, mas cogita a possibilidade de ajudar seu amigo carregando o anel. A resposta de lânguido Frodo foi imediatamente bruta, ordenando que Sam o devolvesse e acusando-o de ser um ladrão! Mas Sam percebe que talvez não estivesse em poder do seu melhor amigo agir de outra forma naquele momento e não considera como sendo isso o que o verdadeiro Frodo diria para ele. Havia uma tendência muito forte de eles iniciarem uma briga naquele instante, mas a linguagem existente entre eles foi fundamental para que Sam não responder igualmente com palavras severas e Frodo se desculpar por ter sido arrogante.

Há, porém, os casos onde não somos coerentes com aquilo que dizemos. Que também pode ser representado naquele ditado popular: "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". Aliás, porque sequer deveríamos considerar essa uma pessoa razoável para darmos ouvidos ao que ela diz com os lábios? Afinal, ela no fundo quer fazer (e verdadeiramente o faz) outra coisa mas não o que seus lábios professam. Sua linguagem mais marcante são seus atos e não o seu discurso proverbial e cheio de aforismos inspiradores. É de se pensar que é como quando Chesterton compara Nietzsche com Joanna D'arc: parece que Nietzsche é inspirador com toda a sua disposição retórica para enfrentar grandes problemas etc., mas quem vai a luta e não temeria nem mesmo um exército sozinha é Joanna D'arc.

Ok! Talvez tu diga que eu deva ter lido o suficiente para tanto conseguir me expressar quanto compreender muita coisa. E de fato sobreviver a leituras de textos complexos como os de Duns Scotus e captar os floreios sem muito sentido de filósofos continentais de certa forma me ajuda bastante na compreensão e elaboração de ideias por conseguir manejar razoavelmente a linguagem, mas isso de nenhuma forma determina o comportamento diante de certos casos. Não nos parece que Kurt Gödel deveria também sugerir que as pessoas muitas vezes entendem o que as outras estão dizendo, mas simplesmente não optam por revidar agressivamente? Qual a diferença entre o relato de Samwise com seu mestre Frodo, e o caso do charuto e do totó dentro do trem?

Parece-me que a perfeição da linguagem está ligada com a lógica do coração baseada na aptidão intuitiva de se relacionar com gentilezas, exposta por Pascal; e que a ausência de uma boa linguagem é uma das causas de grandes conflitos. Teologicamente, é o que sugere alguns versos de Tiago sobre o poder de que a língua tem de destruir. Ex lingua stulta veniunt incommoda multa! (De uma língua tola vêm muitas palavras irritantes!)

Entendemos a arrogância e a incoerência, mas nem sempre precisamos responder a mesma altura e agir como se fosse inevitável dar uma resposta automática que é como "fumaça para os olhos" ou "vinagre para feridas". Bem aventurados são os pacificadores.

Alguns problemas no "filosofar"

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Uma vez eu li que na filosofia existem dois problemas comuns ao tentar propor alguma "nova" teoria filosófica. O primeiro é correr o risco de estar "reinventando a roda", no sentido de que há o perigo de tentar propor algo que já foi proposto anteriormente sem nenhuma adição relevante ao debate. O segundo problema comum é tentar "arrombar uma porta que já está aberta", que é quando alguém faz um esforço enorme para tentar resolver um problema que já foi solucionado.

É verdade que existem muitos pensamentos valiosos e praticamente intocados em autoridades filosóficas do passado e que há também alguns buracos a serem tampados nesses pensamentos. É também verdade que muitos desses buracos já foram fechados e solucionados por autores modernos. Assim como há autores modernos que criticam certos tipos de pensamentos antigos e, mesmo parecendo absurdo, alguns pensadores antigos "abriram portas" que pensadores modernos criam estar "fechadas" e tentaram com bastante esforço "arrombar".

Eu acredito que seria necessário fazer estudos sobre autoridades filosóficas do passado antes de tentar sair criticando tudo e correr o perigo de incorrer em uma "falácia do espantalho" (i.e. quando alguém muda, consciente ou inconscientemente, o argumento original para então propor uma "nova resolução" ou abandonar a tese) e arruinar com a teoria toda. Assim como também é relevante saber o que se passa no debate contemporâneo sobre os mesmos tópicos, para evitar ficar endossando teorias das quais foram apontadas algumas falhas fatais e praticamente abandonada hoje em dia. O problema pode então ser a vasta extensão de textos sobre um determinado assunto.

Me parece que quando cavamos profundamente, em alguns casos, conseguimos encontrar uma base sólida para sustentar algum argumento, mas nem sempre esse argumento é aceito por todos, ainda que seja perfeitamente racional. Mas ainda assim continua sendo necessário aprofundar-se no tema desejado.

A incredulidade de um hobbit chamado Tomé

sábado, 5 de outubro de 2019

Estava eu a ler a terceira parte de "O Senhor dos Anéis" que se chama "O Retorno do Rei" quando, de repente, ao me deparar com uma frase de Gandalf, me veio à cabeça a coragem de São Tomé descrita no Evangelho de João. Gandalf está andando e conversando com o hobbit Pippin, que acabara de oferecer ao Regente a própria vida para lutar por um bem maior. Na conversa, Gandalf se questiona o que passara na cabeça ou coração do pequeno Pippin para ter jurado sua fidelidade "até que o mundo acabe", quando então Gandalf argumenta que não impediu Pippin de fazer tal juramento porque na visão dele as "ações generosas não devem ser reprimidas por conselhos frios". Talvez seja o caso de que Gandalf cogitasse a possibilidade de Pippin falhar, mas ainda assim ele viu que o ato nobre do qual Pippin se comprometera fosse algo para se inspirar ao invés de reprimir, procurando desculpas frias para fugir das responsabilidades.

Quando Jesus diz aos discípulos que tornariam para a Judéia, seus discípulos logo o repreenderam argumentando que a probabilidade de Jesus ser apedrejado por lá, era muito alta, visto que tal tentativa de apedrejamento já havia ocorrido havia pouco tempo. Seus discípulos encontraram uma resposta fria, argumentando que o ato de Jesus de ressuscitar Lázaro não valia a sua morte. Seus discípulos implicitamente argumentaram isso. À exceção de Tomé. Ele é o primeiro a bradar "vamos também nós para morrermos com ele". Se eu tivesse que opinar sobre o que aconteceu em seguida, eu diria que algum dos discípulos deu aquela leve cotovelada em Tomé dizendo: "Shut up, Thomas!"

Mas Tomé não é lembrado por sua coragem e seu ato nobre. Ele é lembrado mais tarde quando o Jesus ressurreto aparece e Tomé - não possuindo razões cognitivas para privilegiar o testemunho epistêmico - argumenta que daria privilégio somente a uma fonte elementar de obtenção de conhecimento. Ele só acreditaria na ressurreição tocando as feridas do Jesus outrora morto. A incredulidade de São Tomé não me parece ser tão diferente da incredulidade que temos em relação a outras fontes de conhecimento, sejam primárias ou secundárias, quando estamos falando do conhecimento de Deus. Mas isso eu não quero discutir aqui.

Será que todos vão lembrar do pequeno Pippin apenas por sua curiosidade em relação a tocar e ver Palantir, ou por sua nobre coragem de oferecer sua fidelidade? Ou, ainda: devemos argumentar friamente que não é razoável oferecer o nosso melhor pois as pessoas apenas lembrarão de quando falhamos?

Idiota!

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Em uma conversa com um amigo, quis saber a opinião dele sobre um trecho de um livro que compara os escritos de Dostoievsky com C. S. Lewis e afirma ser o primeiro muito mais impressionante que o segundo. Esse meu amigo então reclamou que, na opinião dele, os livros de Dostoievsky são demasiadamente lúgubres e que Dostoievsky e Lewis escrevem para públicos diferentes. Pode ser o caso dessa lugubridade, mas somente em alguns momentos. Os livros de Dostoievsky possuem diversos situações distintas que, muitas vezes são até mesmo hilárias. "O diabo que carregue a opinião desse meu amigo!"

O trecho do livro que compara Lewis e Dostoievsky fala especificamente dos clássicos "Os Irmãos Karamazov" e "Crime e Castigo", sugerindo que estes dois livros fornecem uma reflexão muito profunda das consequências práticas do niilismo. Infelizmente, "Os Irmãos Karamazov" não foi concluído pois Dostoievsky faleceu após terminar a primeira parte do livro, deixando seu "herói" sem uma continuação em sua narrativa. Não por isso o livro fica menos impressionante, mas dá uma tristeza não conhecer qual destino teria o personagem principal. E, de certa forma, há uma semelhança muito grande entre o estado psicológico do personagem Ródion Romanovitch Raskólnikov de "Crime e Castigo" e Ivan Fyodorovitch Karamazov de "Os Irmãos Karamazov". A semelhança está no niilismo que ambos professam, embora um deles é "apenas" um niilismo proverbial – que, ainda assim, traz consequências desastrosas para a sua família – e o outro coloca seu niilismo anteriormente proverbial em prática cometendo uma brutalidade sinistra – embora ele demonstre uma bisonhice astronômica e um pavor que o corrói e torna os seus dias cada vez mais lânguidos. 

Embora não tenha finalizado a segunda parte do livro "Os Irmãos Karamazov", eu acredito que Dostoievsky direcionaria uma narrativa muito próxima do que foi o príncipe Míchkin, em "O Idiota". Pois Míchkin é totalmente oposto ao niilismo de Ivan e Ródion. Dostoievsky sugere na introdução de "Os Irmãos Karamazov" que, embora o livro seja um tanto entediante no seu início, o leitor talvez não se arrependeria de seguir até o fim da narrativa e verificar o que ele quer mostrar.

A ideia de Dostoievsky em "O Idiota" é escrever o que na sua opinião seria um "cristão ideal", ou pelo menos alguma espécie de cristão cujo comportamento seja positivamente notável. Suas principais inspirações são Dom Quixote (que eu ainda não li) e Jesus Cristo que, segundo o prefaciador da tradução da Editora 34 sugere ser de "uma imensa ternura e também de grande indignação".

Míchkin é um jovem de 26 anos, que sofre de epilepsia, mas também sofre por ser exaustivamente bondoso, honesto e de uma pureza marcante; ou seja, popular e ironicamente conhecido como um idiota. Parece que naquela época também não estava na moda ser assim.

A tentativa do príncipe Míchkin de entrega do seu eu é inclusive motivo de profunda indignação, como quando a personagem Aglaia se irrita com Míchkin por este se ver inferior aos outros, até porque, segundo ela, ninguém ali merecia as palavras dele e ninguém era digno do seu coração, inteligência, honestidade, decência, etc., e ela não entende por que não havia o mínimo de orgulho no pobre Míchkin.

Mas o Príncipe Míchkin não é apenas uma pessoa que fica constante e passivamente se rebaixando sem razões mas, com uma percepção incomparável sobre o comportamento das pessoas, é capaz de descrever as reais intenções e o caráter destas pessoas que estão à volta dele, tal como Rogójin - seu amigo que, no início se apresenta como uma fiel amigo mas posteriormente manisfesta sua verdadeira identidade desregrada e que confessa que sua ira para com Nastácia poderia fazê-lo terminar com a vida dela -, e Nastácia Filíppovna - cuja beleza encanta o Príncipe Míchkin, que oferece seu amor após toda a vida desgraçada que ela tem. 

Quero evitar spoilers. O fim do livro, podemos comentar durante um café, sem açúcar, se tu me pagar.

Não é um livro muito fácil de se ler. Uma das razões é a quantia enorme de personagens ordinários (e o próprio Dostoievsky dá uma atenção muito grande à essa ordinariedade, de certa forma elogiada pelo autor) que o livro apresenta e, para quem nunca leu algo da literatura russa, talvez fique ainda um pouco mais difícil tentar memorizar os nomes dos personagens. Mas acredito que vale muito a pena o esforço de ler esse livro, principalmente pela sua riqueza sobre estados psicológicos que Dostoievsky soube descrever com uma riqueza incomparável.

Tenho mais uma justificativa para considerar que a narrativa de Dostoievsky na segunda parte de "Os Irmãos Karamazov" seria muito próxima do que foi "O Idiota": o biógrafo de Dostoievsky, Joseph Frank, considera que o livro "O Idiota" é a obra mais autobiográfica de Dostoievsky. Ora, ninguém pode considerar alguém positivamente belo uma pessoa e não seguir de alguma forma esse ideal. Me parece que fazer uma excelente descrição de seu "herói" era o caminho que Dostoievsky queria seguir em "Os Irmãos Karamazov".

Nesses momentos de reflexões sobre os livros de Dostoievsky, me parece que "O Idiota" deu um salto para o primeiro lugar na lista dos meus favoritos, embora eu só tenha lido três até agora.